segunda-feira, 31 de outubro de 2011

De Cara Com a Verdade


Uma de minhas escritoras preferidas - Clarice Lispector - tem uma lucidez que me impressiona e uma forma de escancarar nossa realidade referencial que muitas vezes me desconcerta, talvez porque esteja certa no que diz, porque nos coloque de frente para a verdade, o que, de certo modo, é um choque.

Uma dessas situações me ocorreu ao ler Laços de Família. Uma das frases a respeito de Ana, personagem do livro, diz: "ela se enchera da pior vontade de viver". Fiquei pensando nisso e em suas implicações.

Há, de fato, as "boas" vontades, aquelas que são socialmente aprovadas, fazem parte do script que alguém escreveu para nós, que não causam incômodo e satisfazem a opinião pública. Podem não nos fazerem felizes, mas, por se revestirem de uma áurea de santidade, do politicamente correto, do que alguém disse que era o certo - ou o melhor - a fazer, então são permitidas e são as que devemos seguir, sem argumentar ou refletir se é o que de verdade queremos. Seguimos adiante, obedecendo ao roteiro que foi escrito por outras pessoas e homologado, sem nos ater ao que de fato queremos - e, com isso, seguimos sublimando, negando impedindo a concretização de nossos desejos reais e, que, como tais, são legítimos - ainda que não aprovados.

A pior vontade de viver é extremamente complexa, por vezes angustiante, já que em algumas situações se choca com o que aprendemos ser lícito, e nos fazem quebrar certos paradigmas. Mas se paradigma é um modelo construído e internalizado, então é algo que pode ser quebrado, que pede superação. Não precisamos ficar estagnados. Aliás, a vida é um processo dinâmico e nos lança no ensejo de mudanças, que nos reestruturam e nos tornam maiores.

Somos seres subjetivos e intensos, e muitas vezes o que queremos é entrar naquele quarto proibido. A propósito, proibido por quê? Por quem? Até que ponto precisamos deixar de seguir o real e válido em nossa existência? Por que devemos nos impedir de sermos felizes? Quais são nossos reais limites?

Se é para sermos felizes que viemos ao mundo, por que sonegar sentimentos, fazer rigorosamente o que manda o script, ainda que estejamos, com isso, nos sabotando emocionalmente?

Pode soar subversivo. Pode não parecer muito ético.Mas é a verdade. Por isso, a perplexidade diante da fala de Clarice. E a questão é: se é verdadeiro, então é o certo para nós. Viver uma mentira é que não é muito ético, não é o correto.

É fato que, assim como Ana (a personagem de Clarice em Laços de Família), muitas vezes nos enchemos dessa "pior" vontade de viver. Queremos mais e melhor. Uma vida mais intensa e mais cheia de poesia. Queremos deixar de ficar apenas olhando pelo buraco da fechadura. Queremos entrar num mundo novo, mais colorido, com mais sabor. Para isso, é preciso abrir mão de certas coisas do nosso mundo anterior e enfrentar o olhar de reprovação daqueles que homologaram nosso roteiro de vida e que, sem considerar o que é melhor para a nossa felicidade, são severos num julgamento equivocado e injusto.

É preciso legitimar nossos sentimentos reais, verdadeiros. Aprová-los em nossas vidas e colocá-los na ordem do dia. É preciso nos permitir viver tudo o que podemos para tornar a nossa passagem nesse mundo numa experiência radiosa e plena.
Barrinha MaynaBaby

sábado, 8 de outubro de 2011

Pela Lente da Alteridade



Tenho três filhos. Dois meninos, uma menina - filha do meio. Esta é uma moça linda e adorável - mas extremamente alérgica. Sofre de asma e é sempre um tormento em época de crise, quando praticamente nos mudamos para o hospital.

Foi num desses hospitais, numas dessas situações de crise, que me ocorreu um fato interessante. Não era um hospital novo. Normalmente íamos a ele. Há, no hall principal, uma cafeteria, aonde sempre vou quando tudo está mais normalizado. A pessoa que me atende é sempre a mesma. O que quer dizer que já tivemos vários encontros.

Mas nosso último foi diferente. Fiz todo o ritual de sempre, aflita com a respiração da minha filha, e quando tudo ficou mais tranquilo, muitas horas e várias nebulizações depois, fui tomar um café. E desta vez algo diferente - fora do script - aconteceu. Fiquei em pé, no balcão, tomando lentamente meu café, pensando na vida e observando a simpática atendente. É uma moça simples e agradável. E eu, que puxo conversa até quando peço informações, ao me ver sozinha com a moça, começo a conversar e a deixá-la falar sobre aquilo que desejasse.

Saber ouvir é uma característica minha. Gosto muito de ouvir as pessoas, tenho paciência para escutá-las, tenho paciência para permitir que elas falem sem interrompê-las, ou sem necessitar falar na mesma proporção. Foi assim nesse dia. Deixei que a moça falasse e me surpreendi com sua clareza de espírito, com a forma segura e ética como entendia a vida. Escutei-a falar sobre família, cuidados com filhos, relacionamentos, desejos e aspirações, sobre como conduzia seus objetivos, o que fazia para alcançá-los, sempre com muita lucidez. Aprendi muito com aquela moça, que já tinha mais de trinta, mas com uma cara de menina.

Prestar atenção ao que ela tinha para dizer me proporcionou um momento bom de reflexão. Enquanto ela falava de sua vida e de como se comportava em sua jornada, ia pensando na minha, nos meus atos, nos meus movimentos. O interessante é que fiquei surpresa. Não esperava que aquela conversa inicialmente despretenciosa me fizesse pensar sobre tantas coisas. Também não esperava tanta profundidade no vão de uma conversa simples num café.

Saí dali para voltar a dar atenção à minha filha, levando mais que suco de laranja e croissant. Saí dali pensando também  que muitas vezes perdemos a chance de crescer como pessoa, de aprender coisas novas, de ver a vida por outras perspectivas, só porque não ouvimos o outro. Ao invés de falar esquizofrenicamente sem prestar atenção ao que está ao nosso redor, devemos nos permitir ouvir o que os outros têm a dizer, porque isso tem um duplo papel: é um ato de generosidade - quantas pessoas não precisam de alguém que as escute com atenção e interesse? - e é uma oportunidade de crescimento, de desdobramento em algo maior, que vai além de nosso mundo particular, de nossa lente pessoal, e faz com que nossa visão se alargue diante de uma grande angular.



Barrinha MaynaBaby