terça-feira, 2 de outubro de 2012

Estive, nos últimos meses, envolvida em alguns projetos, ocupada com algumas questões, que terminaram se constituindo como um intervalo na minha vida. Quanto mais vivo coisas novas - boas ou más - me convenço de que a vida é uma experiência fantástica. Nessa trajetória, algo parece patente para mim: a minha disposição de acreditar sempre no ser humano - e essa mania esquisita de achar que tudo dá certo sempre, mesmo quando os outros não veem assim. E o interessante é que para mim, de fato, terminam bem, porque quando as coisas não acontecem como eu esperava, ou planejava, ou queria, eu penso em tudo, analiso a situação, e arrumo um modo de ficar satisfeita, de entender que realmente foi melhor que as coisas terminassem como terminaram.

Acho que os intervalos são bons. Alguns podem pensar que um intervalo na vida de alguém é como um buraco negro, suga a nossa vida, de forma inescapável, criando nela uma deformação espaço-tempo, e enviando-a para uma região em nossa existência da qual não podemos voltar. Não tenho uma visão tão quântica a respeito dos intervalos que nos ocorrem. Vejo-os de outro modo, penso neles como um tempo de dilatação da alma. Parece estagnação, mas na verdade tanta coisa ocorre que nos muda, e nos torna maiores, mais amplos em experiência, mais encorpados, sobretudo quando damos conta de que ele chegou ao seu fim e uma nova página precisa ser escrita.

Essa página nova pode ter formatação diversa, pode ser configurada do modo como decidirmos, ou pode ser preenchida pelas surpresas boas que ocorrem. Quando menos esperamos, surge algo que nos dá ânimo novo, nos faz levitar. Anima, em latim, significa alma. Encher-se da ânimo é alimentar a alma, torná-la plena. Há tantas coisas que nos tornam assim, que nos tiram do eixo e propõem um eixo novo, melhor, mais legítimo, mais seguro.

Esse eixo de que falo se aproxima de uma tese defendida pela filósofa Viviane Mosé: é preciso reflorestar a alma! Viviane diz que precisamos lutar contra o desmatamento humano e que é preciso plantar vida. Penso que é isso que precisamos fazer conosco, cotidianamente - plantar vida em nossa existência. E para isso, é necessário aproveitar bem o tempo de que dispomos. Acredito que o tempo é o maior luxo que podemos ter. Não é possível desperdiçá-lo sem sofrimento. É por isso que se faz importante entendê-lo como um devir - um vir a ser constante - nada é, tudo está - estamos sempre em transformação. A vida é tempo, só há tempo - não há o parado. Temos a ilusão, muitas vezes, de que estamos parados, mas isso ocorre porque nossa percepção não acompanha a mudança, que é lenta; se tivéssemos uma visão especial, veríamos as mudanças que ocorrem segundo a segundo, mas não temos percepção para isso e o fato é que nada é fixo, então a vida são fluxos de transformação de devir que se encontram com outros fluxos e se compõem dando formas provisórias. Na verdade, a vida é um milagre, é um belíssimo milagre, porque se a vida é devir e transformação, a sua trajetória como forma, que é nascer e um dia morrer, é como se fosse no céu uma estrela cadente. Somos, portanto, provisórios, o que há de mais belo, então, é a trajetória do homem. Pascal diz algo muito bonito: a natureza pode nos destruir com uma gota de orvalho, o ser humano não é nada, somos muito pequenininhos, mas temos uma grandiosidade sobre a vida: nós podemos ver a totalidade da vida, e a vida não pode se ver, então o privilégio do ser humano é poder sair do todo que é a vida, e olhar e acompanhar essa trajetória durante setenta, cem anos, e depois voltar a se inserir nesse todo. É como se a consciência do homem fosse uma grande transformação, uma evolução, ao máximo do que a natureza foi; portanto, é uma visão belíssima a de que a consciência do homem é a consciência da vida - o que permite ver a si mesmo e ver a vida de fora.

Dessa forma, cada intervalo que vivemos, se é que posso chamar assim, é pleno de latência, de vida em transformação. Vejo pessoas dizerem que perderam tempo ao viver determinada situação, ou passar um tempo numa relação que não vingou, ou qualquer outra coisa que seja, mas a perda de tempo está em não aproveitar os benefícios da transformação, está em esquecer-se de dobrar-se sobre si mesmo, está em não pensar e refletir, está em não interferir no que fazemos, ou falamos, ou pensamos - está em nos deixar dominar pelos excessos, pelas paixões que nos deixam grudados num canto qualquer. A consciência de si e da mudança do tempo que tudo transforma nos liberta e nos lança para novos rumos, para situações melhores e mais amplas, para relações mais profundas e largas, nos livra da estreiteza, nos permite viver em plenitude. 
Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Procura da Poesia


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade



Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Para Sempre Paris

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman protagonizaram um dos filmes mais importantes do cinema americano - Casablanca - nome da cidade marroquina sob o controle da França durante a Segunda Guerra, onde o filme se passa. Na cena final, uma das mais bonitas e intensas da história do cinema, Rick e Isla se despedem de maneira emocionante. Nessa cena, há uma fala que sempre me comoveu: Quanto Isla pergunta ...- "E quanto a nós?", já que Rick diz que o lugar dela é ao lado de Victor, Rick responde: "Nós sempre teremos Paris." Palco do romance de Rick e Isla, Paris - e todos os acontecimentos vividos pelos dois, relembrados durante o filme, em flashback - estarão para sempre na parede de suas memórias. Lá, eles poderão se reencontrar e reviver o melhor de suas vidas.

Fico pensando: por que, entre tantas lembranças que temos, via de regra escolhemos as piores para reviver: as perdas, as dores, os sofrimentos, as desilusões? Por que não escolher lembrar o que nos fez flutuar, o que nos fez felizes, o que nos deu prazer?

O desejo de aprisionar esses momentos, associado ao fato de que tudo tem seu ciclo - que implica começo, meio e fim - faz com que se evite pensar neles, por medo talvez de sentir saudade. Quanto medo de ter saudade! A saudade pode muito bem ser uma coisa boa, que nos reconforta e nos lança adiante em busca de outros bons momentos, de outras conquistas.
Ou então, é essa tentência equivocada de ver o pote sempre meio vazio, quando podemos muito bem vê-lo meio cheio.

A história de Rick e Isla foi incrível, mas teve um fim. Teria sido melhor não ter acontecido, já que acabou? Penso que não. Penso que nunca deve ser assim. Penso que devemos agradecer as coisas fantásticas que vivemos, mesmo que elas tenham acabado. Penso que precisamos ter desprendimento e sabedoria, para deixar que elas possam cumprir seu ciclo. Penso, sobretudo, que devemos estar abertos e prontos para vivermos outras histórias incríveis. E o melhor de tudo é que nós sempre teremos a nossa "Paris".


Barrinha MaynaBaby

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Bruno de La Rosa


Dono de uma voz marcante e de uma presença de palco que representa a exuberância de seu talento, Bruno de La Rosa é o grande nome novo no cenário da música brasileira. Nascido no Boqueirão (SP) e tendo vivido na noite santista, onde aprendeu muito sobre música e sobre as relações humanas, Bruno é um exímio instrumentista, compositor de primeira grandeza e um cantor de voz profunda e extensa. Seu timbre lembra muito o de Chico Buarque, e seu estilo também - impossível não relacioná-los - é clara a influência desse ícone da MPB na formação de La Rosa. O que, na verdade, é algo recorrente na arte, haja vista que cada artista se identifica com outros que tenham lhe servido de base, sem que isso represente cópia, imitação. Bruno de La Rosa tem identidade própria, é singular em sua pluralidade, tem uma assinatura particular, e isso lhe confere o mérito ao seu trabalho.

Numa época em que o público em geral dá ênfase a músicas mais palatáveis e menos densas, Bruno - que faz questão de dizer que não está imerso em um saudosismo doloroso e infértil - é um músico que gosta de beber na fonte, assim, é um apaixonado por músicas mais antigas, que estiveram na constituição do escopo da MPB e são referenciais importantes, uma vez que, para ele, não há como compreender a tessitura do presente sem um olhar cuidadoso sobre o passado.

No entanto, superando o clichê de que supostamente há música boa ou música ruim, Bruno diz que ouve aquilo de que gosta, que lhe emociona, que lhe faz sentir algo diferente dentro de si. Procura também ouvir de tudo, porque considera necessário uma amplitude auditiva, uma compreensão mais encorpada, justamente para estimular sua criatividade e torná-la mais rica.



Abaixo, seguem alguns vídeos com esse artista sofisticado, que esbanja simpatia e talento.










Barrinha MaynaBaby

domingo, 27 de novembro de 2011

Paralelos


Eram tão diferentes, tudo conspirava contra os dois, pouco havia de comunhão. Mesmo assim, aconteceu de seus destinos se cruzarem numa das voltas dessa roda-viva que se convencionou chamar existência.

Ele era um menino. Lindos olhos e sorriso desabrochado ao vento. Aliás, foi o sorriso que a encantou. Da vida, pouco sabia. Tinha a inquietação típica das almas prenhes de juventude, mas, ao mesmo tempo, um gesto manso. Era, a um só turno, meigo e arrebatador.

Ela era uma mulher. Uma mulher inteira, completa, de uma maturidade terna. Mas os olhos de menina revelavam uma personalidade vivaz, um caráter cativante. Tinha uma beleza madura e sensual, um jeito de se mover que fazia todos paralisarem diante dela, uma voz suave, um olhar meigo e adolescente que cativava e seduzia. Embora da vida tivesse muito o que dizer, tinha mesmo uma fome de viver legítima e apaixonante. A vida, para ela, era sempre agora.

Os dois se sabiam antes de se conhecerem. Quando se viram, logo entenderam que seriam um do outro. Nada foi combinado, definido antecipadamente. Não era preciso explicação, não se exigia esclarecimento. Bastava aquela compreensão de que o inevitável aconteceria.

Se para os dois, no seu mundo particular do amor, tudo era muito natural, para as outras pessoas, as mais próximas, aquilo era um desatino.

"Como Pedro vai se arrumar com uma mulher dessas? Não tá vendo que ela não tem idade para se envolver com garotos?". "Pouca vergonha, isso sim!".

"O que foi que uma mulher como Gabi viu num menino daqueles?". "Quase podia ser seu filho!". "O que ele tem a oferecer a ela?".

Gabi pouco queria saber o que Pedro oferecia. Ou melhor, sabia sim: Pedro oferecia seu afeto, oferecia seus carinhos tímidos, seu sorriso arrebatador. Oferecia sua juventude cheia de brilho, de movimento, de vida em pulsação latente. Isso fazia Gabi sentir-se uma menina, enrubecida pala sedução despudorada de Pedro.

Pedro, por sua vez, não via em Gabi suas marcas de expressão, enxergava para além disso, percebia a mulher forte e frágil ao mesmo tempo, a sua suavidade, a sua doçura, o seu desejo de viver em plenitude, a sua segurança tranquila e a forma mágica de sorrir e dizer "calma, tudo vai dar certo!". E dava. Impressionava a sua sensualidade madura e ao mesmo tempo inquieta, o olhar buliçoso, o jeito de sorrir abaixando os olhos, o modo de dizer baixinho "eu te amo!" ao seu ouvido, depois do amor.

No início, Gabi se sentia insegura. Foram tantas as decepções em sua vida que ela não acreditava despertar um interesse real, desprovido de intenções duvidosas. Havia criado uma espécie de couraça, uma capa protetora, para evitar sofrer. Mas isso era terrível para ela. Primeiro, porque era da sua natureza acreditar nas pessoas - e resistir a isso era difícil, quase um tormento; depois, porque essa resistência a fazia pensar que o problema estava nela, era ela - e não os outros - que não tinha predicados suficientes para fazer alguém interessante apaixonar-se por ela e desejar comprometer-se. Além disso, sentia-se só, queria viver uma linda história, mas achava que isso não mais aconteceria com ela.

Já Pedro sequer pensava em qualquer problema. Encantou-se por Gabi. Tinha por ela desejo. E, certamente, sentia-se mais forte junto dela, afinal era o menino que conseguia conquistar a mulher madura e bem resolvida. É claro que isso lhe dava uma sensação de poder. Mas conviver com Gabi foi lhe possibilitando maior amadurecimento. Pedro passava como um trator por cima de tudo, não media consequências; queria tudo para hoje, sem entender por que às vezes não podia ser assim - era ansioso e impaciente. Com Gabi, aprendeu a olhar para os lados, a perceber a beleza do caminho, a aproveitar o percurso, a rir dos tropeços, a esperar o tempo certo para colher as frutas.

Os paralelos de suas vidas se cruzaram. Sempre muito racional, Gabi dizia para si mesma que deveria ser uma ilusão de ótica, como acontece com os trilhos do trem; mas não era lá longe que se via esse entrecruzamento de emoções, era aqui perto, era no agora - desconsiderar isso era tentar negar o sentimento real que os encapsulava.

Enfim, ela decidiu que viveria um dia de cada vez, que não queria a felicidade toda em dose única, como no fim de um filme, queria em prestações diárias. Acordava de manhã, enchia os pulmões de ar, olhava para Pedro que dormia um sono manso e despreocupado, e decidia que seria feliz naquele dia.

Assim seguiram com suas vidas, com o pacto de que iriam procurar se compreender antes de qualquer embate, sabendo que, no núcleo do respeito que nutriam um pelo outro, havia sinceridade de intenções. Era um pacto muito simples: seriam amigos, antes de serem amantes - jamais deixariam de ser, porque seriam de um tipo raro, os verdadeiros, e sendo assim não haveria possibilidade de mutação - seriam amigos a vida inteira, que é como são os amigos de verdade.

Preocupados em garantir a felicidade do outro, esqueciam a busca frenética por lampejos fugazes de felicidade particular; queriam uma felicidade compartilhada, uma felicidade plural. E perceberam que ela não está nos momentos apoteóticos, está nos gestos simples, nas coisas mais prosaicas, nas revelações cotidianas do amor.

Seguiram assim suas vidas, enredados numa teia de generosidade e delicadeza que constituía a tessitura desse sentimento que se expandia e se dilatava dentro deles.    
Barrinha MaynaBaby