terça-feira, 23 de agosto de 2011

A Flor do Pajeú


Estive há pouco numa cidade que eu ainda não conhecia. Fazia tempo que queria ir até lá, sempre ouvi falar de seus encantos, o clima gostoso, bem frio, em contraste com a região em que está incrustrada - o sertão do Pajeú -, a paisagem, com cachoeiras incríveis, e uma lagoa bem no meio da cidade. Não fica tão longe assim de Recife, onde moro. São 402 km de distância. De carro, 6 horas. Já fui mais longe que isso dirigindo. Mas, embora sempre desejasse ir, faltava oportunidade. Ou faltava decisão.

A cidade faz parte do Circuito do Frio. Eu já tinha ido aos festivais de todas as outras cidades do circuito: Garanhuns, Gravatá, Psqueira, Taquaritinga, para ver a efervecência cultural, as pessoas de diferentes tribos passeando, as propostas diversas, e os shows também. Chegava antes pra ver a cidade ainda calma, mas já entrando num bulício interessante, num movimento ritualístico. A essas cidades também já tinha ido em outros contextos para descansar e descobrir seus recantos preciosos. Faltava Triunfo.

Fui a Triunfo em época de calmaria e pude ver a cidade como ela realmente é. Estava num grupo pequeno - 7 pessoas, das quais 3 ainda não conhecia: um casal e uma amiga deles. Eu me apaixonei completamente pela cidade. Sabe aquele encantamento e a sensação de algo maior crescendo dentro da gente? Foi isso que eu senti. Íamos subindo a serra e meus olhos íam se deliciando, à medida que minha expectativa aumentava. Quando entramos na cidade, parecia que estava entrando em outra dimensão. É uma cidade simples, tranquila, mas há nela uma atmosfera diferente, alguma coisa que ainda não havia sentido em outros lugares aonde fui.

Ficamos numa pousada de freiras, muito conhecida na região, a Pousada Santa Elizabeth. Não é sofisticada, mas extremamente agradável. Um café da manhã que me lembrou os que eu tomava na chácara de minha avó, em Igarassu, onde ela morava, e onde brincava com meus primos, tirando fruta do pé: manga, caju, sapoti, maracujá açú, pitanga, carambola... E araçá. Havia sempre geleia de araçá na casa de minha avó. Quando acordo na primeira manhã em Triunfo e vou com os amigos tomar o café da manhã, encontro aromas e sabores diversos, e entre eles geleia de araçá. Aquele café da manhã tinha o sabor da minha infância.

 Fizemos os passeios tradicionais. Fomos às cachoeiras, uma delas, a Cachoeira das Pingas, tem um conjunto de duas quedas: a primeira forma uma piscina e nela tomamos um banho delicioso, a segunda tem uma queda de 50m - do alto, uma cena deslumbrante: avistamos, extasiados, parte do vale do Pajeú; visitamos uma caverna chamada Furna dos Holandeses, conhecemos a gruta de João Neco - uma figura folclórica, que nos recebe carinhosamente de foice na mão; a gruta tem um poço de 20m, com uma água límpida, construído em 1932; fomos também a um engenho onde conhecemos o processo de fabricação desde a chegada da cana-de-açúcar até o processo final com as fornalhas de rapadura e os barris de envelhecimento da bebida, e onde também encontramos uma bodega, para comprar cachaça  branca e envelhecida, licor de cana e rapadura de diversos sabores; fomos ao Pico do Papagaio, a 1.260m de altura - o teto de Pernambuco, com um mirante natural de beleza indescritível; compramos café torradinho na hora (o sabor do café moído e torrado na hora e adoçado com rapadura não tem igual); fizemos todas as trilhas a bordo da rural de seu Antônio e, por último, passeamos de teleférico. Enfim, vivemos nosso momento de turistas.

Mas, depois disso, fui andar pela cidade, subindo e descendo as ruas, sentando nas praças, conversando com as pessoas, sempre muito hospitaleiras e amáveis. Numa noite, assisti a um festival de repente, promovido por um bar local e que aconteceu no meio de uma praça superaconchegante. Fiquei um tempo sentada em frente à lagoa, agasalhada do frio de 14º. Aquela paisagem me pareceu mágica. Fiquei pensando que parte dessa magia se devia àquela água, geradora de vida, como toda água, em sua fecundidade emergente.

Sonhei com um lugar assim para morar. Talvez futuramente...

Mas outra coisa também me passou pela cabeça, em meio aos devaneios: por que passei tanto tempo para ir a um lugar a que há muito desejava ir e que, realmente, me proporcionou tantos bons momentos, a ponto de desejar revivê-los e fazer planos com eles? Por que adiamos certas coisas em nossas vidas? Não estamos prontos? Não é o momento? Temos outras coisas mais importantes para fazer?

O interessante é que tomei a decisão de ir num impulso. Não tinha planejado tudo. Apenas deixei acontecer. Numa noite, conversando com amigos, soube que iriam a Triunfo. Comentei: "tenho tanta vontade de conhecer!". Eles me perguntaram: "Por que não vai com a gente?". E eu disse: "Por que não?". E fui.

Algumas vezes precisamos desses impulsos. Não quero dizer que devemos ser irresponsáveis. Mas não podemos planejar 100% a nossa vida. Nem é saudável isso. Às vezes é preciso deixar fluir, apenas permitir que as coisas aconteçam. É preciso correr o risco de ser feliz. Nietzsche nos segreda algo importante: "é preciso perder-se quando queremos aprender algo das coisas que nós próprios não somos". Será o medo da descoberta, do novo, e do novo em nós, o que nos impede de nos lançar mais na vida?

Podemos ter duas posturas antagônicas diante de nossos sonhos, desejos, aspirações: ir atrás deles, com energia e paixão, ou deixar que eles escorram por entre os dedos, como água a descer pelo ralo. Talvez, entre tantas sensações terríveis que é possível ter, a que sentimos ao perceber que perdemos a oportunidade de fazer algo que verdadeiramente amamos é a mais doída.

Woddy Allen, no filme Crimes e Pecados, diz uma fala que me fez pensar: "somos a somas de nossas decisões". Sejamos, então, como propõe Pessoa, grandes por sermos inteiros, por colocarmos tudo de nós em cada coisa que fazemos, por nos permitir arriscar e crescer, por desejar e buscar sermos felizes, por saber manter nossa essência, na medida em que buscamos novas cores para nossa existência, já que, como nos diz Clarice Lispector: "sou sempre a mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre".

Barrinha MaynaBaby

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

À luz de Paracelso

"Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem
ao mesmo tempo, como as cerejas, não sabe nada a respeito das uvas". (Paracelso)


Esperar das pessoas um comportamento linear, regular, condinzente com nossos desejos e expectativas, é fadar-se ao insucesso e à frustração. É preciso paciência, constância e certeza do que se quer; é preciso tranquilidade para esperar que nossos desejos se realizem no tempo certo; é preciso, por fim, resignação quando da colheita não se conseguirem os frutos desejados.
Barrinha MaynaBaby

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Ainda sob o signo de João Cabral



Um dos curtas mais importantes e premiados da cineasta pernambucana Kátia Mesel é Recife de dentro pra fora (1997), vencedor de 26 prêmios em festivais nacionais e internacionais, entre os quais destacamos o de melhor fotografia, no festival de Gramado, e o de melhor documentário, no Festival Internacional de Curta Metragem de Bilbao, na Espanha. O filme é um documentário, com duração de 15 minutos, sobre o rio Capibaribe. É baseado no poema O cão sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto. No documentário, assim como no poema de João Cabral, há uma importante denúncia social. O caráter crítico permeia toda a obra, desnudando o que a sociedade anseia esconder, ao mostrar todas as faces do rio, do mar, do mangue, de sua ligação intrínseca com a cidade e com a miséria, numa perspectiva diferente: de dentro do rio para fora, para a cidade que o margeia, como diria João Cabral: "com imagens tanto mais fortes quanto mais diferentes são as realidades que as aproximam".

O poema de João Cabral é dividido em quatro partes: I- Paisagem do Capibaribe, II- Paisagem do Capibaribe, III- Fábula do Capibaribe, IV- Discurso do Capibaribe. O texto mostra o rio para além de sua condição de cartão postal da cidade, mas como parte integrante, fundamental, inseparável do todo que constitui a essência do Recife, mostrando-o como meio de subsistência, como local de formação de mangue e berçário de caranguejos, como local de brincadeiras de meninos moradores de casas ribeirinhas, como cenário de contemplação nos quintais das famílias ricas da região, como via de locomoção, enfim como elemento inescapável da cena recifense.

De todos os elementos que compõem a imagética deste poema, talvez um dos mais bonitos e fortes seja o que é representado nos versos abaixo, sobretudo por mostrar a relação simbiótica entre o homem e o rio, e por desvelar a desumanização do homem, sua coisificação, em função das carências que sofre e que o afastam de sua condição humana mais digna:

"(...) Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem. (...)"

No curta, estão presentes os versos de João Cabral, não exatamente na ordem que o autor lhe dá, em seu texto original, mas de acordo com o olhar e a proposta da cineasta. Os versos ora são recitados, ora são cantados, por Elba Ramalho, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, que musicaram o poema. O resultado é belíssimo, comovente. A letra refinada de João Cabral, com os acordes sofisticados desse trio de primeira grandeza é, sem dúvida, um deleite.

Abaixo, estão o curta (em duas partes) e o poema na íntegra. Espero que se deliciem com eles. Beijo a todos.









O Cão Sem Plumas

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se
em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado

à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
Barrinha MaynaBaby

Nas Sendas de João Cabral

                                                      
 Tecendo a Manhã
  João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Sou absolutamente apaixonada por esse poema de João Cabral, sobretudo por sua sonoridade e pelas imagens delicadas que ele permite. Há nele passagens lindíssimas. O poema se estrutura em duas partes - representadas pelas duas estrofes que o compõem. E é a partir do significado dos dois primeiros versos que o poema é construído: "um galo sozinho não tece a manhã / ele precisará sempre de outros galos", de maneira que é o canto conjunto dos galos o elemento responsável por compor a manhã. Isso se evidencia nos versos seguintes (3, 4, 5, 6), que, por não estarem concluídos - a estrutura sintática não está completa - indicam continuidade eencadeamento: assim como o canto dos galos - antes de terminar um, outro galo já começa a cantar, como em resposta ao anterior, e assim acontece subsequentemente, de modo que "se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo".

Nos versos "para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo entre todos os galos", a imagem criada associa-se ao nascimento da manhã. Isso também é evidenciado em outros versos, cujos elementos criam a mesma imagem de manhã sendo tecida:
uma tenda - onde entrem todos
um toldo - livre de armação, em que todos se "entretendam"
tecido aéreo
luz balão

É comum, na poética de João Cabral, o tema do fazer poético. Cabral compôs inúmeros metapoemas, ou seja, poemas que falam sobre como os poemas são compostos. Este texto de João cabral também se insere nessa categoria, se considerarmos a tessitura da manhã como uma metáfora para falar da tessitura do texto poético.

Há também, em João Cabral de Melo Neto, um importante investimento na forma, uma vez que ele se preocupa em construir o poema palavra por palavra, assim como om operário constrói o edifício tijolo por tijolo, esquadrinadamente. É o próprio Cabral quem fala: "sou um poeta intelectual, ñão sou lírico; sou um poeta construtor, construtivista, e não um poeta espontâneo".






Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ser ou não ser de ninguém?

Esbarrei recentemente num texto superinteressante de Arnaldo Jabor sobre como andam as relações afetivas nesse mundo de meu Deus. Interessante seu olhar superlúcido, altamente esclarecido a respeito de um fenômeno do mundo moderno: a falta de compromisso nas relações, a necessidade de não formar vínculos, o medo de ligar-se ao outro e com isso se expor, expor seus sentimentos, seu mundo interior. Reproduzo o texto abaixo, para que todos possam refletir também. Superbeijo, queridos.

"Na hora de cantar, todo mundo enche o peito nas boates, nos bares, levanta os braços, sorri e dispara 'eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também'.
No entanto, passado o efeito do uísque com energético e dos beijos descompromissados, os adeptos da geração "tribalista" se dirigem aos consultórios terapêuticos, ou alugam o ouvido do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição.
A maioria não quer ser de ninguém, mas quer que alguém seja seu. Beijar na boca é bom? Claro que é! Se manter sem compromisso, viver rodeado de amigos em baladas animadíssimas é legal? Evidente que sim. Mas por que reclamam depois?
Será que os grupos tribalistas se esqueceram da velha lição ensinada no colégio, que diz que "toda ação tem uma reação". Agir como tribalista tem consequências, boas e ruins, como tudo na vida...
Não dá, infelizmente, para ficar somente com a cereja do bolo - beijar de língua, namorar e não ser de ninguém. Para comer a cereja, é preciso comer o bolo todo e nele os ingredientes vão além do descompromisso, como: não receber o famoso telefonema no dia seguinte, não saber se está namorando mesmo depois de sair um mês com a mesma pessoa, não se importar se o outro estiver beijando outra, etc, etc, etc. Embora já saibam namorar, "os tribalistas" não namoram. Ficar, também é coisa do passado. A palavra de ordem hoje é "namorix". A pessoa pode ter um, dois e até três namorix ao mesmo tempo. Dificilmente está apaixonada por seus namorix, mas gosta da companhia do outro e de manter a ilusão de que não está sozinho. Nessa nova modalidade de relacionamento, ninguém pode se queixar de nada.
Caso uma das partes se ausente durante uma semana, a outra deve fingir que nada aconteceu, afinal, não estão namorando. Aliás, quando foi que se estabeleceu que namoro é sinônimo de cobrança? A nova geração prega liberdade, mas acaba tendo visões unilaterais. Assim como só deseja "a cereja do bolo tribal", enxerga somente o lado negativo das relações mais sólidas.
Desconhece a delícia de assistir a um filme debaixo das cobertas num dia chuvoso comendo pipoca com chocolate quente, o prazer de dormir junto abraçado, roçando os pés sob as cobertas e a troca de cumplicidade, carinho e amor.
Namorar é algo que vai muito além das cobranças. É cuidar do outro e ser cuidado por ele, é telefonar só pra dizer bom dia, ter uma boa companhia para ir ao cinema de mãos dadas, transar por amor, ter alguém para fazer e receber cafuné, um colo para chorar, uma mão para enxugar lágrimas, enfim, é ter "alguém para amar".
Já dizia o poeta que "amar se aprende amando" e se seguirmos seu raciocínio, esbarraremos na lição que nos foi passada nas décadas passadas: relação é sinônimo de desilusão. O número avassalador de divórcios, nos últimos tempos, só veio a confirmar essa tese, e aqueles que se divorciaram (pais e mães dos adeptos do tribalismo) vendem, na maioria das vezes, que casar é um péssimo negócio e que uma relação sólida é sinal de frustrações futuras.
Talvez seja por isso que pronunciar a palavra "namoro" traga tanto medo e rejeição. No entanto, vivemos em uma época muito diferente daquela em que nossos pais viveram. Hoje podemos optar com maior liberdade e não somos mais obrigados a "comer sal juntos até morrer". Não se trata de responsabilizar pais e mães, ou atribuir um significado latente aos acontecimentos vividos e assimilados na infância, pois somos responsáveis por nossas escolhas, assim como o que fazemos com as lições que nos chegam.
A questão não é casual, mas quem sabe correlacional. Podemos aprender a amar nos relacionando, trocando experiências, afetos, conflitos e sensações. Não precisamos amar sob os conceitos que nos foram passados. Somos livres para optarmos! E ser livre não é beijar na boca e não ser de ninguém. É ter coragem, ser autêntico e se permitir viver um sentimento... É arriscar, pagar para ver e correr atrás da felicidade. É doar e receber, é estar disponível de alma, para que as surpresas da vida possam aparecer. É compartilhar momentos de alegria e buscar tirar proveito até mesmo das coisas ruins.
Ser de todo mundo e não ser de ninguém é o mesmo que não ter ninguém também... É não ser livre para trocar e crescer... É estar fadado ao fracasso emocional e à tão temida solidão."
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Que Simone de Beauvoir Nos Salve!

Estava outro dia no banco onde tenho conta, sentada, esperando ser atendida. Ia fazer umas operações e aguardava o gerente. Enquanto isso, eu, que leio até bula de remédio, comecei a me entreter com a leitura dos panfletos que vendiam os produtos oferecidos pelo banco: seguro, capitalização etc. Um deles, o que falava de previdência, me chamou à atenção. Na verdade, o texto era simples e não oferecia nada muito diferente do que as outras previdências existentes no mercado; falava, como todas as outras, dos seus benefícios, discutia sobre qual o melhor regime tributário, considerava como poderia ser a aplicação, se a fundo conservador, moderado ou agressivo, enfim, o trivial. E, então, me deparo com um produto que pode não ser novo, mas eu ainda não tinha visto: o Prev Mulher.

Pensei comigo: um modelo de previdência privada específica para mulher? Interessante. Somos mesmo tão diferentes do gênero que nos acompanha nessa trajetória sócio-histórica e, por que não (?) galáctica, que precisamos de um plano de previdência específico para nós? Óbvio que, como integrante desse grupo especial que tem até plano de previdência próprio, fui ler com atenção, já pensando: "que é que eu estou fazendo que não tenho um Prev Mulher?", "Mas que tipo de mulher eu sou?" Até porque o texto dizia que esse é um produto inovador e eu, que jurava estar inserida no contexto da pós-modernidade, ainda não possuía esse produto que me inscreve, por seu caráter inovador, nos códigos do mundo moderno.

E então, com a melhor expressão de pasmo absoluto, leio as vantagens que esse tipo de previdência pode me conferir ao me garantir assistências exclusivas: orientação nutricional, descontos em rede de estética, assistência Pet e, o melhor, serviço "Seu Ajudante" para reparos e instalações.

Fui forçada a sorrir porque era claro que se tratava de uma piada! Mas depois, novamente lúcida, lembrei que nada naquela instituição estava relacionado ao humor. Todas aquelas gravatas e saltos ultrafinos jamais permitiriam que brincadeiras saltitassem naquele recinto. Ali era lugar para coisas sérias. Nada de risos. Cenhos franzidos e expressões severas eram mais apropriados.

Foi então que pensei que aquilo era algo realmente muito sério. Séculos de opressão feminina, de recalque, de discriminação contra a mulher não poderiam ser superados por meros sutians queimados. É preciso mais que isso. Mudar a mentalidade medieval sobre o papel da mulher ao lado (veja bem: nem acima nem abaixo) do homem no mundo contemporâneo talvez seja uma tarefa mais difícil do que supomos.

Não precisamos do Prev Mulher ou precisamos tanto quanto os homens. Os benefícios garantidos por esse produto não são, na verdade, exclusivos da mulher. São todos benefícios legítimos. Realmente, parece haver lucro, há uma contrapartida razoável, embora não seja essencial, mas é um supérfluo que garante comodidade e conforto, para ambos os gêneros (para o homem tanto quanto para a mulher). Há, portanto, um equívoco no nome do produto.

Ou então um equívoco na visão que se tem da mulher. O que subjaz ao discurso do Prev Mulher? Orientação nutricional: as mulheres estão sempre preocupadas com a balança, têm medo de engordar, são compulsivas por shakes e dietas de todos os astros do sistema solar (entre as quais a da lua, sem dúvida, é a campeã), sofrem porque não conseguem entrar mais na calça tamanho 38, de quando tinha 17 anos, e usam o tamanho 40 deitando na cama pra fechar o zíper porque se negam a comprar o tamanho 42 (preferem a morte!). Desconto em rede de estética: preocupação nº 2 na vida da mulher (associada à 1ª) - cabelo, unha, pele, medidas. Assistência animal: depois da lancheira dos filhos, a maior preocupação da mulher seria que xampu comprar para o totó? Serviço "Seu Ajudante": enquanto o marido se preocupa com coisas realmente importantes, a mulher, dedicada à casa, se beneficia com a ajuda doméstica garantida pelo Prev Mulher.

Então continuei em meus pensamentos profundos: ou eu não sou mulher (e descobrir isso 40 anos depois me exigiria alguns anos de terapia) ou tem alguma coisa errada com o Prev Mulher. Porque uso tamanho 42 sem traumas; vou ao mesmo salão há anos para retocar minhas luzes douradas de que tanto gosto, mas ainda que mantenha minhas unhas limpas (higiene é fundamental!), nem sempre tenho paciência para ficar 1h na manicure só para escolher o esmalte da moda e estou devendo uma visita ao dermatologista (ai, ai, as rugas!), que vivo adiando - tem sempre coisa mais importante pra fazer; acho fofos cachorrinhos e gatinhos, mas não me dedico tanto a eles; e, pasmem: sei trocar lâmpada, desentupir pia, consigo com alguma facilidade trocar os móveis da casa e consertar coisas simples. Tenho certeza (ou quase) de que não tomei nenhum elixir ou fiz parte de alguma experiência genética. Já meu irmão, 8 anos mais novo, é um espécime interessante: casado, duas filhas, lindo de morrer (ou de viver), cabra macho (por opção), faz as unhas toda semana, adora cremes e perfumes, é fiel à nutricionista, tem sua dieta colada à geladeira, é incapaz de trocar uma lâmpada, encanamento nem pensar, e só não tem um frufru pra passear no calçadão e comprar as novidades do pet shop porque é alérgico, mas tenho certeza de que sonha com isso.

Há algum problema nisso? Então seria meu irmão um cliete potencial mais adequado ao Prev Mulher do que eu? Mas embora ele não tenha nenhum dúvida com relação à sua sexualidade, não é adequado um produto que não se dirige a ele, que não o engloba.

Meu irmão não é excessão. Como disse, frequento o mesmo salão há anos - sim, fidelidade é uma de minhas qualidades - e conheço muitos homens que também o frequentam há tanto tempo quanto eu. Eles já foram chamados de metrossexuais, como se fossem uma espécie diferente, andróginos. Isso é, como toda forma de preconceito, um absurdo dos grandes e uma ignorância indizível.

Cuidar da saúde, da beleza, gostar de animais, não saber ou não gostar de fazer serviços domésticos, como reparos ou instalações, nada disso é exclusivo do público feminino. Pensar assim é evocar a visão estereotipada da mulher como se esta só se interessasse por coisas consideradas fúteis. Pensar assim não é inovar, é retroagir, é manter-se preso aos códigos do século XIX.



Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ah, Bruta Flor do Querer!


Vontade e Desejo. Quase irmãs siamesas. Complementares. Cada qual tem a sua individualidade suas características próprias e suas funções, mas ambas, para serem sadias, precisam ser interdependentes, uma precisa da outra para garantirem os movimentos de contração e expansão próprios da existência humana.

Desejo é paixão, é arrebatamento, é expansão. Nasce da imaginação, da fantasia, do sonho. E é exigente e impaciente: quer tudo ao mesmo tempo - agora! Não compreende o tempo, na verdade, não o suporta, precisa de satisfação imediata.

Vontade é decisão, é discernimento, pode ser tanto expansão quanto contração. Nasce da reflexão, do pensamento amadurecido, ponderado. Assim, o tempo, para ela, é mais um amigo, é aquele que a ajuda a realizar-se. O esforço e o bom senso trabalham considerando o meio e os fins e aceitam que a satisfação não seja imediata.

Existem, então, três características fundamentais da vontade que a distinguem do desejo: 1- Esforço para superar os obstáculos materias, físicos e psíquicos - persistência, obstinação, permanência são suas marcas, por isso falamos em força de vontade. 2- Reflexão antes da ação -  pensar, medir, comparar, observar, julgar, enfim, avaliar para então realizar a tomada de decisão. 3- Responsabilidade - a vontade realiza-se no plano do possível, do que pode ser ou pode deixar de ser, daquilo que tem condições de acontecer a partir de um ato voluntário.

Mas vontade sem desejo não se realiza. É propriamente o desejo que permite o ensejo dos motivos interiores e os objetivos exteriores para que a vontade se concretize numa ação. Se cabe à vontade educar moralmente o desejo, cabe ao desejo impulsionar a vontade, dar-lhe motivação necessária para a sua concretização.

Então vontade e desejo, juntamente com consciência, formam a tríade que dão estrutura à  vida ética, sendo a consciência e o desejo responsáveis pelas intenções e motivações e a vontade responsável pelas finalidades e ações.  As intenções e motivações estão para a qualidade das atitudes e sentimentos internos do sujeito assim como as ações e finalidades estão para a qualidade das atitudes externas, ou seja, a conduta e o comportamento deste mesmo sujeito.

Muito se poderia discutir acerca desse tema, dentro de uma perspectiva filosófica. Há correntes de pensamento diversas, como o racionalismo ético, o emotivismo ético, e mesmo o pensamento nietzscheano, muitas vezes chamado de irracionalismo, que propõe uma genealogia da moral. Mas penso que cada um de nós compreende a importância de dar o espaço e o peso adequados à vontade e ao desejo em nossa existência - ou seja: a medida certa, o equilíbrio. Na nossa vida prática e na nossa vida afetiva, precisamos de ponderação, de reflexão, de fazer bom juízo dos fatos e planejar nossas ações, mas não podemos deixar de dar vazão às nossas emoções, às paixões, aos desejos, à expansão da força vital.

Do contrário, ficamos apenas no plano e não conseguimos nos satisfazer, perdemos a oportunidade de sentir prazer, de viver em plenitude tudo o que podemos. E, por melhor que seja a partitura, nada se compara à musica executada. Assim, façamos uma reflexão profunda das nossas possibilidades, mas sem o peso da severidade excessiva, e sim graciosamente leve como o levitar dos colibris.
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Canção para os fonemas da alegria


Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas

são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.

Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:

porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão

que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena paga por ser homem,
mas o modo de amar – e de ajudar

o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:

ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte

contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.

(Santiago do Chile, Verão de 1964
Thiago de Mello, Faz Escuro Mas eu Canto, Editora Civilização Brasileira,
Rio, 1965)

Thiago de Mello, poeta amazonense, dedica seu poema a Paulo Freire (1921 – 1997), educador pernambucano que foi exilado pelo regime militar e ficou conhecido internacionalmente conhecido pelo seu método de alfabetização de adultos. Na 1ª estrofe, o eu lírico se propõe a fazer do poema um “canto de amor publicamente”.

O poema canta a alfabetização e as transformações que ela proporciona, o que se pode observar pela presença de palavras como “soletrar”, “no alfabeto”, unindo pedaços de palavras”, Paulo Freire. Na 2ª estrofe, o eu lírico afirma que só sabe falar de amor quando reparte o “ramo azul de estrelas”. Considerando a cor e o brilho sugeridos por essa expressão metafórica, pode-se dizer que ela apresenta um sentido positivo, pois o azul e as estrelas se associam a céu, luz, amplitude e claridade. Para o eu lírico, o amor pode ser traduzido por sentimentos como união, fraternidade, solidariedade, comunhão, doação, o que se evidencia por meio do verbo “reparto”.

O educador Paulo Freire defendia o ponto de vista de que, para alfabetizar, é preciso partir de palavras que fazem parte do mundo do alfabetizando, isto é, palavras que digam respeito ao seu trabalho, à sua habitação, à comunidade em que vive etc. Paulo Freire disse que “o comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e de temas ligados à experiência do educador”. Partindo desse ponto de vista, compreende-se a afirmação contida na 4ª estrofe (porque, dentro da palavra ti-jo-lo, existem paredes, aconchegos e janelas), porque o alfabetizando ao tomar contato com as palavras escritas que representam o mundo que está ao seu redor, passa a ter uma visão mais real, mais global e integrada desse mundo.

Na 6ª estrofe, é feita uma referência ao homem que nem sequer tem uma casa para habitar, mas, apesar disso, é um homem diferente, que renasceu. A verdadeira mudança desse homem consiste no fato de que agora ele é um homem alfabetizado, que passa a compreender melhor o mundo em que vive, passa a valorizar-se e a integrar-se, conforme os trechos “acaba por unir a própria vida”, “descobre num clarão / que o mundo é seu também”. Na 7ª estrofe, são aproximados elementos de campos semânticos diferentes: argila e orvalho, tristeza e pão, cambão e beija-flor. De acordo com o texto, o que possibilita a aproximação desses elementos é a capacidade de ler a palavra e, a partir dela, “ler o mundo”, isto é, compreender o mundo. Nesse contexto, o alfabetizando passa a ver o mundo de forma integrada; tudo nele passa a fazer sentido.

A metáfora clarão, na linha 19, significa, no contexto, a descoberta da palavra escrita e, por conseqüência, da própria realidade. Na 9ª estrofe, o verso “que o mundo é seu também” sugere ser a alfabetização um meio para o ser humano alcançar sua cidadania. A palavra trabalho, presente no verso 20, significava, para o trabalhador, antes de ele ser alfabetizado, castigo, sofrimento. No entanto, depois de ter sido alfabetizado, a palavra passa a significar um ato de amor, de doação, uma forma de melhorar o mundo.

Nas estrofes 10 a 12, com o apoio de várias metáforas, é estabelecida uma comparação entre o homem que nasce da alfabetização e o homem novo que nasceria do evangelho pregado por Jesus. Considerando as idéias e os valores defendidos pelo cristianismo, esses dois “homens novos” se assemelham, pois ambos os homens estariam libertados (um da ignorância e o outro do pecado) e lutariam por um mundo melhor.

No sentido religioso, a boa-nova é o evangelho, o conjunto das idéias cristãs. Para o homem recém-alfabetizado, a boa-nova é a própria alfabetização e o conjunto das transformações que ela provoca. Na 12ª estrofe, há uma oposição entre “bicho de quatrocentos anos” e “quarenta horas de total ternura”. Considerando que o poema foi escrito no século XX – portanto depois de mais de quatrocentos anos do descobrimento do Brasil –, é possível levantar a hipótese de que esse bicho de quatrocentos anos é a ignorância, o analfabetismo, a submissão. A expressão “quarenta horas de total ternura” está ligada a Paulo Freire, que dizia ser o número de aulas necessário para ensinar alguém a ler.

É um texto lindo, como todos os de Thiago de Mello. Uma delícia lê-lo, pela sonoridade, pela articulação e escolha das palavras, além de tratar de um tema tão interessante ao universo do brasileiro. Convido a todos a procurar outros textos desse poeta maraviloso e encantar-se com sua obra.
Barrinha MaynaBaby