terça-feira, 2 de agosto de 2011

Canção para os fonemas da alegria


Peço licença para algumas coisas.
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas

são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.

Às vezes nem há casa: é só o chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:

porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão

que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena paga por ser homem,
mas o modo de amar – e de ajudar

o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:

ele atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte

contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.

(Santiago do Chile, Verão de 1964
Thiago de Mello, Faz Escuro Mas eu Canto, Editora Civilização Brasileira,
Rio, 1965)

Thiago de Mello, poeta amazonense, dedica seu poema a Paulo Freire (1921 – 1997), educador pernambucano que foi exilado pelo regime militar e ficou conhecido internacionalmente conhecido pelo seu método de alfabetização de adultos. Na 1ª estrofe, o eu lírico se propõe a fazer do poema um “canto de amor publicamente”.

O poema canta a alfabetização e as transformações que ela proporciona, o que se pode observar pela presença de palavras como “soletrar”, “no alfabeto”, unindo pedaços de palavras”, Paulo Freire. Na 2ª estrofe, o eu lírico afirma que só sabe falar de amor quando reparte o “ramo azul de estrelas”. Considerando a cor e o brilho sugeridos por essa expressão metafórica, pode-se dizer que ela apresenta um sentido positivo, pois o azul e as estrelas se associam a céu, luz, amplitude e claridade. Para o eu lírico, o amor pode ser traduzido por sentimentos como união, fraternidade, solidariedade, comunhão, doação, o que se evidencia por meio do verbo “reparto”.

O educador Paulo Freire defendia o ponto de vista de que, para alfabetizar, é preciso partir de palavras que fazem parte do mundo do alfabetizando, isto é, palavras que digam respeito ao seu trabalho, à sua habitação, à comunidade em que vive etc. Paulo Freire disse que “o comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e de temas ligados à experiência do educador”. Partindo desse ponto de vista, compreende-se a afirmação contida na 4ª estrofe (porque, dentro da palavra ti-jo-lo, existem paredes, aconchegos e janelas), porque o alfabetizando ao tomar contato com as palavras escritas que representam o mundo que está ao seu redor, passa a ter uma visão mais real, mais global e integrada desse mundo.

Na 6ª estrofe, é feita uma referência ao homem que nem sequer tem uma casa para habitar, mas, apesar disso, é um homem diferente, que renasceu. A verdadeira mudança desse homem consiste no fato de que agora ele é um homem alfabetizado, que passa a compreender melhor o mundo em que vive, passa a valorizar-se e a integrar-se, conforme os trechos “acaba por unir a própria vida”, “descobre num clarão / que o mundo é seu também”. Na 7ª estrofe, são aproximados elementos de campos semânticos diferentes: argila e orvalho, tristeza e pão, cambão e beija-flor. De acordo com o texto, o que possibilita a aproximação desses elementos é a capacidade de ler a palavra e, a partir dela, “ler o mundo”, isto é, compreender o mundo. Nesse contexto, o alfabetizando passa a ver o mundo de forma integrada; tudo nele passa a fazer sentido.

A metáfora clarão, na linha 19, significa, no contexto, a descoberta da palavra escrita e, por conseqüência, da própria realidade. Na 9ª estrofe, o verso “que o mundo é seu também” sugere ser a alfabetização um meio para o ser humano alcançar sua cidadania. A palavra trabalho, presente no verso 20, significava, para o trabalhador, antes de ele ser alfabetizado, castigo, sofrimento. No entanto, depois de ter sido alfabetizado, a palavra passa a significar um ato de amor, de doação, uma forma de melhorar o mundo.

Nas estrofes 10 a 12, com o apoio de várias metáforas, é estabelecida uma comparação entre o homem que nasce da alfabetização e o homem novo que nasceria do evangelho pregado por Jesus. Considerando as idéias e os valores defendidos pelo cristianismo, esses dois “homens novos” se assemelham, pois ambos os homens estariam libertados (um da ignorância e o outro do pecado) e lutariam por um mundo melhor.

No sentido religioso, a boa-nova é o evangelho, o conjunto das idéias cristãs. Para o homem recém-alfabetizado, a boa-nova é a própria alfabetização e o conjunto das transformações que ela provoca. Na 12ª estrofe, há uma oposição entre “bicho de quatrocentos anos” e “quarenta horas de total ternura”. Considerando que o poema foi escrito no século XX – portanto depois de mais de quatrocentos anos do descobrimento do Brasil –, é possível levantar a hipótese de que esse bicho de quatrocentos anos é a ignorância, o analfabetismo, a submissão. A expressão “quarenta horas de total ternura” está ligada a Paulo Freire, que dizia ser o número de aulas necessário para ensinar alguém a ler.

É um texto lindo, como todos os de Thiago de Mello. Uma delícia lê-lo, pela sonoridade, pela articulação e escolha das palavras, além de tratar de um tema tão interessante ao universo do brasileiro. Convido a todos a procurar outros textos desse poeta maraviloso e encantar-se com sua obra.
Barrinha MaynaBaby

3 comentários:

Lúcia Oliveira disse...

SIMPLESMENTE M A R A V I L H O S O!!!!!!!
Que escolha refinada, que bom gosto, para compartilhar. Parabéns...

Unknown disse...

Nao consigo deixar de me emocionar com este poema tão encantador c o mo este do Thiago de Mello.Pessoaa como ele e Paulo Freire jamais deixarão de existir...

Rosângela Dias Santos disse...

Queremos vida. Alegria...