sexta-feira, 29 de julho de 2011

"Em cada lago a lua toda brilha porque alta vive"



"Viver e não ter a vergonha de ser feliz; cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz". A música de Gonzaguinha para alguns já virou lugar comum, talvez por sua repetição, pela citação exaustiva que as pessoas fazem dela para se referirem a essa coisa espetacular que é a existência humana.

Sobre a capacidade de aprender lembro Guimarães Rosa que disse: " O senhor mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam - verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra de montão". Paralelamente a isso, Paulo Freire afirma: "O homem é o único animal capaz de transformar vida em existência". O que se coaduna com a perspectiva de Vítor da Fonseca, quando este fala que "o homem só chegou ao nível de evolução em que está por causa do processo de comunicação e interação", endossando Vigotski, que teorizava: "na ausência do outro do homem não se constroi homem". Ou seja: a aprendizagem, mediante a troca entre os pares, faz com que os sujeitos sejam ao mesmo tempo singular e plural e estejam todo o tempo se reinventando.

Mas será que em meio a todo o aprendizado acumulado ao longo de nossas experiências sócio-filo-ontogenéticas conseguimos aprender a perder a vergonha de ser feliz? Será que, de verdade, entendemos, como diria Guimarães Rosa, que o "real e válido na árvore (=na vida) é a reta que vai para cima", ou seja, que nos conduz para algo maior, para além de nós mesmos?

É certo que todos temos arestas a serem aparadas em nossas vidas. Temos dores - físicas e emocionais; vivemos conflitos - com nós mesmos e com os outros, como seres de relação que somos; criamos expectativas e nos frustramos; passamos por crises - financeiras e existenciais; desejamos mais e melhor, temos momentos de angústias, de tristeza. Essas coisas fazem parte da vida e - pasmem! - de uma vida feliz também. Não há problemas em ter conflitos ou frustrações, não há grandes problemas em ter momentos de introspecção ou mesmo de tristeza e de dor. A grande questão é: como passamos por esses momentos, por essas situações; é o modo como passamos por eles que vai fazer toda a diferença e permitir um aprendizado maior e uma vida menos rasa e estreita, ou mesmo ampla e profunda, marcada por grandes e significativas conquistas, enriquecida por aspectos fundamentais: tranquilidade, serenidade, leveza, encantamento.

Será essa uma visão romântica? É poesia demais? E então me pergunto: mas por que mesmo haveria minha vida de ter poesia de menos? Lembro dos Titãs, e seu olhar superesclarecido da vida:

COMIDA (Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio britto)

Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Pra aliviar a dor...
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade...
Diversão e arte
Para qualquer parte
Diversão, balé
Como a vida quer
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo
Necessidade, vontade

"A gente quer inteiro e não pela metade" - Pronto. É isso. Os Titãs mataram a charada: não se quer uma vida pela metade, uma quase felicidade, um quase amor, uma quase relação, uma quase existência. A gente deve querer sempre mais. Não exatamente coisas palpáveis, objetos da sedução publicitária, não necessariamente os artigos da pós-modernidade, nem mesmo os produtos do universo pequeno-burguês. Mas sim aquilo que nos eleva a alma.

O que se deve ter é uma vida por inteiro - com todas as implicações que isso possa trazer. Algo intenso, que transborde nossa verdade interior, algo superiormente interessante, que faça nossa alma se dilatar, expandir-se em percepções, sensações, sentimentos, em vida latente, pulsante, de verdade, integral, inteira.
Barrinha MaynaBaby

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Blues na Terra de Suassuna


Ontem teve início a 9ª Edição do Projeto OI BLUES BY NIGHT. Abrindo esta nova temporada contamos com os talentos do tecladista Flávio Naves, do guitarrista Lancaster, famoso bluseiro que nos arrepia com seu estilo Chicago, e do organista Deacon Jones, um dos mais renomados mestres em Hammond B3 – um teclado clássico muito utilizado no blues, como também no rock, que permite sons e timbres espetaculares.

O lendário Deacon foi durante 18 anos nada menos que o band leader da banda de Jonh Lee Hocker, tendo também tocado com diversos outros nomes renomados do blues e do rock internacional, como Eric Clapton, Carlos Santana, Buddy Miles, Willie Dixon e Stivie Ray Vaughn, entre outros. Considerado o embaixador do blues, Deacon desta vez nos brindou com seu talento acompanhado também da excelente Uptown Band, de Giovanni Papaleo. Junto com Flávio Naves, Deacon Jones gravou o disco "The Legacy of the Hammond B3", cujas canções estiveram no repertório da noite de ontem.  Enquanto esperavam esse espetáculo, os amantes do blues iam se deliciando com a excelente Handmade Blues, de Marcelo Demo e Kco.

O OI BLUES BY NIGHT  é o maior evento de blues do Nordeste, que teve como idealizador o músico e produtor Giovanni Papaleo, considerado um dos mais importantes produtores de blues e jazz do Brasil, baterista e fundador da Uptown Band, pioneira banda de blues de Pernambuco. Giovanni Papaleo é também produtor do Garanhuns Jazz Festival, tendo recebido o prêmio Mestre Salustiano do Turismo, e do Jazz Porto (em Porto de Galinhas). Perguntado sobre o que escuta, Papaleo disse com simplicidade: "qualquer estilo que não seja 'fuleiragem music'; não gosto dessa tendência atual de que música tem que ser conceitual, que o músico tem que ter atitude. Eu gosto de música livre, sem fronteiras, que possa alegrar a alma e nos enriquecer interiormente e nos torna seres humanos mais felizes". É com esse espírito que o projeto de Papaleo, em parceria com a Oi, foi edificado.

Este ano, o projeto será itinerante, com edições em sete capitais nordestinas. O Recife contará com cinco shows do festival e terá a próxima apresentação no dia 31 de agosto, com Lil' Ray Neal, como atração principal. Aqui, a edição acontecerá novamente no Spirit Music Hall, excelente dacing bar no bairro dos Aflitos (Rua do Futuro, 821 - tel. 3268.4080), começando sempre às 22h.


Recife se orgulha de ter um evento dessa magnitude em sua agenda. Os amantes do gênero já são favorecidos com banda maravilhosas e músicos fantásticos que trazem o jazz e o blues para a noite do Recife de forma bastante expressiva, haja vista o projeto Recife Blues Sessions, com apresentações semanais em locais diversos. O Oi Blues By Night vem dar ainda mais brilho e garantir um enriquecimento maior pela presença de músicos de primeira grandeza, permitindo uma troca salutar com os músicos locais, não menos talentosos,  o que demonstra a importância desse evento para a cena pernambuana. Só nos resta apreciar cada uma das edições do evento. Simplesmente imperdível.
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 26 de julho de 2011

Marisa - o canto mágico da sereia



Que linda voz tem Marisa Monte! Fico completamente embevecida ao ouvi-la cantar. Nunca me canso - música após música, meu deleite é sem igual - incomensurável. Quem já a viu no palco sabe bem o que significa estar hipnotizado: é assim que nos sentimos, tamanho o encantamento diante de uma presença que preenche completamente o ambiente, transbordando graça, leveza, elegância, sensualidade e talento. Dona de uma voz sofisticada, Marisa Monte é uma verdadeira diva - um deslumbramento.

Marisa estudou belcanto, em Roma, para onde foi morar antes de completar 20 anos. Assim como Maria Callas, que, na década de 50, traz de volta a tradição vocal e interpretativa da ópera italiana, com uma técnica que teve entre seus maiores representantes Rossini - maravilhoso autor de óperas, como O Barbeiro de Servilha -, Marisa faz um uso expressivo de cores vocais que nos deixa extasiados.

É, além de cantora, instrumentista, compositora, produtora musical, considerada pela Rolling Stones Brasil como a melhor cantora brasileira e com dois álbuns na lista dos melhores 100 discos da música brasileira: "MM" e "Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão". Antes mesmo de gravar o primeiro disco, a cantora já fazia um sucesso grande e tinha seu nome aclamado pela crítica. Seu primeiro grande sucesso foi Bem Que Se Quis (1989) - versão da música E Po' Che Fa, de Pino Danielle, versão composta por Nelson Motta. Nove anos depois de seu primeiro sucesso, Marisa conquista sua independência, comprando todas as fitas matrizes desde MM, seu álbum de estreia, até Barulhinho Bom, álbum de 1996. Abre o seu próprio selo - Phonomotor Records -, com distribuição pela gravadora EMI.

Embora Marisa tenha estudado canto lírico desde os 14 anos, a cantora se dedicou à música pop e ao samba, tendo feito excelentes parcerias nesse gênero, como a que estabeleceu com Paulinho da Viola e com a Velha Guarda da Portela. Em 2002, Marisa faz uma parceria incrível com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que adotaram o nome Tribalistas e tiveram com esse álbum uma repercussão enorme, com 1,5 milhão de cópias vendidas no Brasil e mais 1 milhão no resto do mundo, com sucessos como "Já sei namorar", hit de 2002, "Velha infância", hit de 2003, e "É você".

Aproveito esse espaço para colocar uma seleção de músicas belíssimas e refinadas dessa cantora de primeira grandeza. Desejo a todos um grande deleite.



























Barrinha MaynaBaby

quarta-feira, 20 de julho de 2011

ENTRE AMIGOS - Martha Medeiros

Para que serve um amigo? Para rachar a gasolina, emprestar a prancha, recomendar um disco, dar carona pra festa, passar cola, caminhar no shopping, segurar a barra. Todas as alternativas estão corretas, porém isso não basta para guardar um amigo do lado esquerdo do peito.

Milan Kundera, escritor tcheco, escreveu em seu último livro, "A Identidade", que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos de testemunhas do passado e diz que eles são nosso espelho, que através deles podemos nos olhar. Vai além: diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano ficaria desarmado contra seus inimigos.

Verdade verdadeira. Amigos recentes custam a perceber essa aliança, não valorizam ainda o que está sendo construído. São amizades não testadas pelo tempo, não se sabe se enfrentarão com solidez as tempestades ou se serão varridos numa chuva de verão. Veremos.

Um amigo não racha apenas a gasolina: racha lembranças, crises de choro, experiências. Racha a culpa, racha segredos.

Um amigo não empresta apenas a prancha. Empresta o verbo, empresta o ombro, empresta o tempo, empresta o calor e a jaqueta.

Um amigo não recomenda apenas um disco. Recomenda cautela, recomenda um emprego, recomenda um país.

Um amigo não dá carona apenas pra festa. Te leva pro mundo dele, e topa conhecer o teu.

Um amigo não passa apenas cola. Passa contigo um aperto, passa junto o reveillon.

Um amigo não caminha apenas no shopping. Anda em silêncio na dor, entra contigo em campo, sai do fracasso ao teu lado.

Um amigo não segura a barra, apenas. Segura a mão, a ausência, segura uma confissão, segura o tranco, o palavrão, segura o elevador.

Duas dúzias de amigos assim ninguém tem. Se tiver um, amém.
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 19 de julho de 2011

Como Água Para Chocolate

"Cinema é como um sonho, como uma música. Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz; vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos escuros de nossa alma." (Ingmar Bergman)


Fizemos aqui em casa uma sessão de cinema. Algumas amigas, queijos, vinhos, conversa gostosa, filme de arte, discussão acalorada em meio a algumas digressões e boas risadas. O filme escolhido foi "Como Água Para Chocolate". A maioria já havia assistido a esse excelente filme mexicano, mas entre tantos maravilhosos - um deles era " A festa de Babette" -, decidimos assistir a ele, procurando compreender as nuances da proposta do diretor Alfonso Arau.

O filme narra a história de três gerações de uma tradicional família mexicana, com bastante sensibilidade e uma significativa carga metafórica, muito próprio do Realismo Mágico, típico de Gabriel Garcia Marquéz, com quem a obra dialoga. Baseia-se no livro homônimo de Laura Esquivel. O livro tem como subtítulo: "Novela de Entregas Mensuales, Com Recetas, Amores Y Remedios Caseros", com publicação em 1989. O subtítulo se configura como um paratexto bastante revelador da estrutura do romance.


O livro constitui-se de 12 capítulos. Cada um deles corresponde a um mês do ano. No entanto, a história não se passa nesse tempo e sim num tempo bem maior: começa com o nascimento de Tita de La Garza e acompanha toda a sua trajetória de vida, tendo como pano de fundo a Revolução Zapatista. O livro faz menção específica aos exércitos de Pancho Villa, uma vez que a história se passa no norte, num rancho próximo à fronteira México-EUA. É importante destacar que a história promove uma parábola da Revolução Mexicana, que derrubou o porfiriato militar-católico para instituir o governo socialista.

Cada capítulo traz uma receita - culinária ou não: há uma receita interessante de codorna com pétalas de rosas, mas também há uma receita de como preparar fósforos. Na verdade, são as instruções de preparo que vão conduzindo a narrativa. É a partir de um "libro de cocina", recebido de herança, que a narradora recupera a história familiar e amorosa de Tita (Lumi Cavazos), sua tia-avó, uma mexicana que viveu no fim do século XIX, início do século XX, e é a autora do "libro". O filme, que retrata bem o amor incompreendido, traz a comida como forma de comunicação e expressão de sentimentos contidos. Como Tita é a responsável pela cozinha do rancho, é através da comida que ela transmite seu amor, desejo, dor, nos pratos que prepara.

A história relatada traz como personagem central Tita (Lumi Cavazos), que nasceu na cozinha do rancho de sua família. O pai de Tita morre pouco depois, vítima de um infarto fulminante, por ter tido sua paternidade questionada. Tita fica sendo, então, a filha mais nova. Segundo a tradição local, a filha mais nova é impedida de casar, pois sua função na família deverá ser cuidar da mãe enquanto esta estiver viva. O problema é que, ao crescer, Tita se apaixona por Pedro Muzquiz (Marco Leonardi - que também atuou no excelente "Cinema Paradiso"), um jovem promissor do local. A mãe de Tita, em virtude da tradição, veta o casamento e sugere que Pedro se case com Rosaura, irmã dois anos mais velha que Tita. Pedro aceita o casamento com Rosaura com a intenção de ficar perto de Tita.

Muitas reflexões podem ser feitas a respeito do percurso da mulher e do respectivo cotejo com a história patriarcal. Tita é uma mulher insubmissa que, tendo como motivo um amor negado pela tradição familiar, luta pela ruptura dessa tradição, não demonstra aceitação, não acata subordinadamente sua condição mesmo numa sociedade patriarcal, e mesmo não podendo mudar essa condição. Impedida de expressar o que sente, Tita se dedica à cozinha, elaborando pratos que transmitem seus sentimentos a todos que deles se alimentam. É assim com o bolo do casamento de Rosaura que, temperado com suas lágrimas, provoca uma crise de choro coletiva nos convidados da festa; ou como na cena em que o desejo de Tita por Pedro é revelado pela codorna preparada com as pétalas da rosas que Pedro oferta a Tita, diante de todos e apesar deles. Ao comerem a comida assim preparada, todos à mesa sentem também a mesma pulsão sexual =- é uma cena maravilhosa em que, por meio da comida, Tita e Pedro concretizam o desejo sexual que toma conta deles.

Esse é, então, um mote que aponta para as diversas possibilidades no campo da comunicação. Além disso, demonstra o não assujeitamento da personagem: impedida de revelar seu querer e seu dizer, por uma mãe castradora que vigia todos os seus passos, Tita tem na elaboração dos pratos uma forma de comunicar seus sentimentos.

Como água para chocolate é uma expressão típica mexicana - uma expressão idiomática. No México, o chocolate quente é preparado com água quente e não com leite, como fazemos aqui. Para tanto, a água precisa estar fervendo. A expressão significa "estar fervendo de raiva" - ou de alguma outra emoção forte, como o amor. E é exatamente assim que a personagem central quase sempre está ao preparar seus pratos. Tita, ao preparar o "mole", prato mexicano, reflete sobre o poder do fogo e compreende sua função ao ter contato com os alimentos, o seu poder transformador, ou seja, é ele - o fogo - que transforma as massas em tortas, por exemplo; o peito que não foi tocado pelo fogo do amor não passa de uma massa sem utilidade, é um peito inerte, portanto é o fogo do amor o único capaz de transformar o ser e dar sabor à existência.

"Como Água Para Chocolate" é um filme lindo, diferenciado quanto à sua estética. O cinema latino-americano sempre viveu numa espécie de encruzilhada, envolvido num dilema entre fazer cinema de arte, influenciado pela estética europeia, ou fazer cinema para ter lucro, típico da proposta norte-americana. Em fins da década de 1980 e na década de 1990, fomos favorecidos com uma geração nova de cineastas latino-americanos, como o mexicano Alfonso Arau e o brasileiro Walter Salles, que conseguiram uma interface possível entre arte e lucro, com produções de sucesso junto ao público, sem que isso se constituísse uma heresia.

O filme recebeu boas críticas no ano de seu lançamento, 1992. Foi indicado para o Globo de Ouro (1993), como melhor filme estrangeiro. Recebeu os prêmios do público no Festival de Gramado (1993), como melhor filme, e o de melhor atriz (Lumi Cavazos) e melhor atriz coadjuvante (Claudette Maillé). Também recebeu 10 Prêmios Ariel (o Oscar Mexicano), entre eles: melhor filme, melhor atriz, melhor ator, melhor roteiro e melhor diretor.

Passamos os 105 minutos do filme a nos encantar com a proposta de Alfonso Arau para a leitura da obra de Laura Esquivel. Apaixonada que somos por Gabriel Garcia Marquéz e seu realismo mágico, nós nos deliciamos com as personagens fortes da trama, além do triângulo amoroso vivido por Tita-Pedro-Rosaura. Outras personagens nos inspiram: a imagem imponente da mãe - Mamá Elena, a irmã mais velha, Gertrudis, que é um exemplo de felicidade realizada ao fugir com um sargento zapatista em uma situação pra lá de inusitada, a cozinheira Nacha, que cuida de Tita como se fosse sua mãe; a empregada Chencha, que alegra o rancho com seu jeito divertido e brincalhão.

Acompanhar a vida de Tita nos fez lembrar do mito de Penélope, que esperou 20 anos pelo seu amor Ulisses, tecendo uma mortalha durante o dia e desfiando à noite, de modo que nunca a terminasse. É uma metáfora para simbolizar o amor verdadeiro, que não tem fim e tudo suporta. Lembramos também de Camões e seu soneto sobre a história bíblica de Jacó e Raquel:

“Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela
Mas não servia ao pai, servia a ela
Que a ele só por prêmio pretendia

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava contentando-se com vê-la
Porém o pai, usando de cautela,
No lugar de Raquel, lhe deu a Lia

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora
Como se a não tivera merecida

Começou a servir outros sete anos
Dizendo: mais servira se não fora
Para tão grande amor tão curta a vida”.

Lindo texto de Camões. Os versos finais são, para mim, os mais belos da literatura de língua portuguesa, por representarem a verdadeira entrega da qual o amor está imbuído.

Faz também lembrar as palavras de Mahatma Gandhi: “o amor é a força mais sutil do mundo”.



Lindo filme. Linda tarde. Recomendo a todos.



Barrinha MaynaBaby

sábado, 16 de julho de 2011

Timidez


Basta-me um pequeno gesto
Feito de longe e de neve
Para que venhas comigo
E eu para sempre te leve...

- Mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
Da montanha dos instantes
Desmancha todos os mares
E une as terras mais distantes

- Palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
Entre os ventos taciturnos,
Apago meus pensamentos,
Ponho vestidos noturnos,

- Que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
Os mundos vão navegando
Nos ares certos do tempo,
Até não se sabe quando...

E um dia me acabarei.

Cecília Meireles
Barrinha MaynaBaby

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A Utopia Está no Horizonte

 "Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos"
(Eduardo Galeano)
 

Acabei de ler a reedição de "As Veias Abertas da América Latina", de Eduardo Galeano. Eu o li pela primeira vez em 1989. Tinha então 17 anos e acabava de entrar na Faculdade de Letras. O livro foi indicação de uma professora de Literatura, que viria ser mais tarde um referencial importante em minha trajetória como professora. Gosto de reler livros que considero importantes, sob pontos de vista diversos, e 23 anos após a primeira leitura, deparei com um exemplar desse livro emblemático. Lembrei na hora de um amigo querido, ator em São Paulo, que me presenteou com um vídeo interessante que traz uma entrevista maravilhosa com Eduardo Galeano (reproduzo abaixo para todos se deliciarem com ela). Esse vídeo foi mote de muitos dedos de prosa entre nós - conversas deliciosas, reflexões várias, considerações diversas - ficamos discutindo o quanto o discurso é plurissignificativo e quantas são as possibilidades de leitura. Quando entrei na Cultura para comprar "Notas do Subsolo", de Dostoiévski, que estou lendo agora, encontrei um exemplar do livro de Galeano, lembrei de meu amigo e decidi que seria muito bom ler esse livro outra vez. E foi.

Em 1989, estávamos num contexto sócio-político-econômico diferente do que vivemos hoje. Estávamos no ocaso da década de 80, marcada pelo fim da idade industrial e início da era da informação. Para a América Latina, foi considerada a "década perdida", em referência à estagnação econômica vivida pelos países desse Continente. No Brasil, crises econômicas, índices elevados de inflação, aumento importante da dívida externa, desemprego, déficit fiscal, entre outros fatores marcaram o fim do "milagre econômico", ciclo de expansão vivido nos anos 70. Outros fatos importantes também se deram nessa década: a luta pelas eleições diretas, a vitória de Tancredo Neves e da democracia, o luto dos brasileiros com a morte de Tancredo, em 1985, a promulgação da Constituição Brasileira de 5 de outubro de 1988, considerada a Constituição Cidadã, em vigência até hoje, a eleição de Fernando Collor de Mello, como primeiro presidente eleito pelo povo depois de mais de vinte anos sem eleções diretas, que mais tarde, em 1992, seria obrigado a renunciar, em virtude do processo de impeachment a que foi submetido por ser denunciado pelo irmão, Pedro Collor de Mello, acerca de envolvimento com corrupção, junto ao tesoureiro Paulo César Farias. Sobre esse tempo, anterior às Diretas (que foi gestada nele), Drummondo teria dito; "Este é um tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio silêncio, tempo de boca gelada e murmúrio, de palavra inquieta, murmúrio na esquina". Chico Buarque denunciava: "Dormia a nossa Pátria Mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações". Ler "As Veias Abertas da América Latina", aos 17 anos, recém-ingressa na Universidade, em meio a essa efervecência sócio-política, fez com que eu me situasse no tempo e no espaço e pudesse dar maior volume à minha visão de mundo.

Eduardo Galeano é um escritor uruguaio, autor de importante livros, como "Memórias do Fogo", que é uma trilogia da História das Américas; "O Livro dos Abraços", interessante por abordar temas diversos de forma lúdica e profunda, oferecendo uma crítica mordaz ao capitalismo moderno; "Espelhos", sua obra mais recente e que nos remete aos fatos camuflados pela História Oficial; entre outros. Seus textos, embora muito plenos de poeticidade, são também extremamente viscerais, certamente por tratar de questões socias contundentes. Segundo o próprio autor, Eduardo Galeano pode ser definido como "um escritor que remexe no lixo social".

Nascido em 3 de setembro de 1940, Galeano inicia a carreira de jornalista na década de 60, tendo contribuído para importantes jornais uruguaios. Em 1973, após ter lançado "As Veias Abertas da América Latina", e no ensejo do Golpe Militar no Uruguai, Galeano é levado a se exilar na Argentina. Três anos depois, com o golpe do General Jorge Videla, na Argentina, Galeano novamente se vê forçado a  partir para novo exílio, desta vez na Espanha, temendo pela sua vida, já que seu nome consta nas listas dos esquadrões de morte. É nesse período que dá inicio à Trilogia "Memórias do Fogo".

Com "As Veias Abertas da América Latina", Galeano nos oferece um texto lírico e amargo ao mesmo tempo. A linguagem poética e suave do autor se entrecruza com a severidade e a dureza das questões ensejadas e permitem um discurso único, que transborda humanismo, solidariedade e amor pela liberdade e pelos menos favorecidos. O livro tornou-se um clássico do discurso libertário, uma vez que se insere, desde sua 1ª publicação, em 1970, no contexto das Ditaduras Americanas, apresentando-se como uma espécie de inventário da dependência e da vassalagem a que vem sendo submetida a América Latina, desde que os europeus aqui aportaram. Inicialmente, portugueses e espanhóis, Mais tarde, franceses, holandeses e ingleses. Modernamente, norte-americanos.

Em sua reedição, de 2010, Galeano lastima em seu prefácio que o livro, após 40 anos, ainda seja atual:

"A História não quer se repetir - o amanhã não quer ser outro nome do hoje -, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia."

Sejamos, pois, alunos mais aplicados e aprendamos o que nos ensina a História. Assim, vislumbraremos um novo mundo possível, gestado no ventre deste mundo de hoje, como diz, poeticamente, Galeano.

"A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."


Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Nas teias da leitura

Li  "O Escaravelho do Diabo" pela primeira vez quando estava na 8ª série (hoje 9º ano). Tinha 13 anos e já era uma leitora voraz. E lia de tudo, desde os livros solicitados no programa da escola até os clássicos e os livros que não eram necessariamente apropriados à minha faixa etária. Lembro que nessa época li "A Ilha", um livro-reportagem, escrito por Fernando Morais e publicado em 1976, indicado por um professor de inglês, queridíssimo, mas uma figura muito interessante - peculiar. O livro aborda Cuba pós-revolução sobre vários aspectos e se tornou um ícone da esquerda brasileira. Na época, eu era uma garotinha, mas a leitura foi importante para que eu começasse a entender algumas questões que estávamos vivendo nos idos de 1984. Li também quase toda a obra de Nelson Rodrigues por indicação de um professor de matemática que, curiosamente - ele não era de humanas, como era de se esperar - foi o grande responsável por me fazer me apaixonar de modo irremediável pelo mundo da leitura e quem me iniciou na minha odisséia rumo à leitura do mundo.

Assim, tinha um gosto bastante eclético. Mas confesso uma predileção por livro de mistério e suspense. E como preconceito é algo destruidor e abjeto, busco não manifestar a menor ideia preconcebida acerca de nada. É assim com a literatura também. Leio o que gosto, não o que dizem que é bom do ponto de vista estético, leio o que me dá prazer e me provoca um ir além de mim. Gosto, por exemplo, dos livros de Agatha Christie. Têm para mim a função de me distrair, de me esvaziar a mente, me tira de minha realidade referencial, me faz tembém exercitar certas funções cognitivas, porque me entretenho a solucionar os crimes, de acordo com as pistas deixadas na subjacência do discurso, e analiso também a coerência do texto, se de fato faz sentido o percurso cotextual, além do contextual. Mas sobretudo me divirto com as peripécias de Poirot e com seu estilo garboso e quase cômico, sem falar na adorável Miss Marple ou no coronel Hastings, fiel companheiro de Poirot, puro e ingênuo, de tão manifesta bondade que se torna uma figura encantadora, sem contar que é uma delícia o diálogo entre os dois.

Foi assim com "O Escaravelho do Diabo". O livro foi escrito por Lúcia Machado de Almeida, autora mineira, que estudou Literatura, História da Arte, Piano e Canto. É jornalista e escritora, sobretudo de livros infanto-juvenis, tendo recebido vários prêmios com suas publicações. Lúcia faz parte de uma família de escritores: é irmã de Paulo, Aníbal e Carolina Machado, todos escritores; tia de Maria Clara Machado, autora de livros infantis e cunhada do poeta Guilherme de Almeida.

O livro narra uma série de assassinatos que ocorrem em Vista Alegre, uma cidade linda e tranquila, até então extremamente pacata. Hugo, um rapaz sardento e simpático, de 18 anos, dono de uma vasta cabeleira avermelhada, recebe pela manhã um pacote do correio. Imediatamente, o rapaz supõe tratar-se de um presente de uma admiradora. No entanto, ao abrir o embrulho, tem um susto: dentro da caixa está um besouro negro com uma espécie de chifre na testa - era um escaravelho. Alberto, seu irmão, um dedicado aluno de medicina, diz para que ele jogue o inseto fora, mas Hugo quer saber quem o enviou e guarda o besouro.. Dias depois, ao chegar em casa, Alberto vê que seu irmão ainda está no quarto estranhamente trancado por dentro. Bate à porta de modo insistente, mas não obtem resposta. Uma aflição começa a tomar conta dele e, num ímpeto, arromba a porta. A cena que vê o deixa chocado: Hugo deitado na cama com uma espada cravada no peito e uma lividez assombrada no rosto. Seu irmão estava morto. Alberto fica abalado pela tristeza de seu irmão morto e inconformado com o fato de "Foguinho", como era chamado Hugo, ser tão querido e amável, de modo que não tinha inimigo algum. Quem, então, poderia querer fazer uma coisa dessas com ele? Assim começa a busca de Alberto para encontrar o assassino do irmão. A grande questão é que este não é um assassinato isolado, mas apenas o primeiro de muitos, todos ocorridos na cidade, envolvendo pessoas ruivas, que sempre recebiam, como um aviso macabro, um escaravelho pelo correio.

É uma história simples, escrita para adolescentes. Mas, embora eu já a tenha lido aos 13 anos, quando eu estava escolhendo alguns livros para meu filho ler durante as férias, dei com um exemplar de "O Escaravelho do Diabo" em minha biblioteca. Sentei para folheá-lo, é claro que fiquei perdida em minhas memórias adolescentes, deliciada com essa viagem no tempo, e me peguei envolvida novamente pela narrativa gostosa de Lúcia Machado de Almeida. Fui para a rede (não tem nada mais gostoso do que ler na rede) e passei a tarde presa pela caçada de Alberto ao assassino de Foguinho. Eita tarde gostosa! Recomendo uma tarde assim a todos.
Barrinha MaynaBaby