"Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos"
(Eduardo Galeano)
Acabei de ler a reedição de "As Veias Abertas da América Latina", de Eduardo Galeano. Eu o li pela primeira vez em 1989. Tinha então 17 anos e acabava de entrar na Faculdade de Letras. O livro foi indicação de uma professora de Literatura, que viria ser mais tarde um referencial importante em minha trajetória como professora. Gosto de reler livros que considero importantes, sob pontos de vista diversos, e 23 anos após a primeira leitura, deparei com um exemplar desse livro emblemático. Lembrei na hora de um amigo querido, ator em São Paulo, que me presenteou com um vídeo interessante que traz uma entrevista maravilhosa com Eduardo Galeano (reproduzo abaixo para todos se deliciarem com ela). Esse vídeo foi mote de muitos dedos de prosa entre nós - conversas deliciosas, reflexões várias, considerações diversas - ficamos discutindo o quanto o discurso é plurissignificativo e quantas são as possibilidades de leitura. Quando entrei na Cultura para comprar "Notas do Subsolo", de Dostoiévski, que estou lendo agora, encontrei um exemplar do livro de Galeano, lembrei de meu amigo e decidi que seria muito bom ler esse livro outra vez. E foi.
Em 1989, estávamos num contexto sócio-político-econômico diferente do que vivemos hoje. Estávamos no ocaso da década de 80, marcada pelo fim da idade industrial e início da era da informação. Para a América Latina, foi considerada a "década perdida", em referência à estagnação econômica vivida pelos países desse Continente. No Brasil, crises econômicas, índices elevados de inflação, aumento importante da dívida externa, desemprego, déficit fiscal, entre outros fatores marcaram o fim do "milagre econômico", ciclo de expansão vivido nos anos 70. Outros fatos importantes também se deram nessa década: a luta pelas eleições diretas, a vitória de Tancredo Neves e da democracia, o luto dos brasileiros com a morte de Tancredo, em 1985, a promulgação da Constituição Brasileira de 5 de outubro de 1988, considerada a Constituição Cidadã, em vigência até hoje, a eleição de Fernando Collor de Mello, como primeiro presidente eleito pelo povo depois de mais de vinte anos sem eleções diretas, que mais tarde, em 1992, seria obrigado a renunciar, em virtude do processo de impeachment a que foi submetido por ser denunciado pelo irmão, Pedro Collor de Mello, acerca de envolvimento com corrupção, junto ao tesoureiro Paulo César Farias. Sobre esse tempo, anterior às Diretas (que foi gestada nele), Drummondo teria dito; "Este é um tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio silêncio, tempo de boca gelada e murmúrio, de palavra inquieta, murmúrio na esquina". Chico Buarque denunciava: "Dormia a nossa Pátria Mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações". Ler "As Veias Abertas da América Latina", aos 17 anos, recém-ingressa na Universidade, em meio a essa efervecência sócio-política, fez com que eu me situasse no tempo e no espaço e pudesse dar maior volume à minha visão de mundo.
Eduardo Galeano é um escritor uruguaio, autor de importante livros, como "Memórias do Fogo", que é uma trilogia da História das Américas; "O Livro dos Abraços", interessante por abordar temas diversos de forma lúdica e profunda, oferecendo uma crítica mordaz ao capitalismo moderno; "Espelhos", sua obra mais recente e que nos remete aos fatos camuflados pela História Oficial; entre outros. Seus textos, embora muito plenos de poeticidade, são também extremamente viscerais, certamente por tratar de questões socias contundentes. Segundo o próprio autor, Eduardo Galeano pode ser definido como "um escritor que remexe no lixo social".
Nascido em 3 de setembro de 1940, Galeano inicia a carreira de jornalista na década de 60, tendo contribuído para importantes jornais uruguaios. Em 1973, após ter lançado "As Veias Abertas da América Latina", e no ensejo do Golpe Militar no Uruguai, Galeano é levado a se exilar na Argentina. Três anos depois, com o golpe do General Jorge Videla, na Argentina, Galeano novamente se vê forçado a partir para novo exílio, desta vez na Espanha, temendo pela sua vida, já que seu nome consta nas listas dos esquadrões de morte. É nesse período que dá inicio à Trilogia "Memórias do Fogo".
Com "As Veias Abertas da América Latina", Galeano nos oferece um texto lírico e amargo ao mesmo tempo. A linguagem poética e suave do autor se entrecruza com a severidade e a dureza das questões ensejadas e permitem um discurso único, que transborda humanismo, solidariedade e amor pela liberdade e pelos menos favorecidos. O livro tornou-se um clássico do discurso libertário, uma vez que se insere, desde sua 1ª publicação, em 1970, no contexto das Ditaduras Americanas, apresentando-se como uma espécie de inventário da dependência e da vassalagem a que vem sendo submetida a América Latina, desde que os europeus aqui aportaram. Inicialmente, portugueses e espanhóis, Mais tarde, franceses, holandeses e ingleses. Modernamente, norte-americanos.
Em sua reedição, de 2010, Galeano lastima em seu prefácio que o livro, após 40 anos, ainda seja atual:
"A História não quer se repetir - o amanhã não quer ser outro nome do hoje -, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia."
Sejamos, pois, alunos mais aplicados e aprendamos o que nos ensina a História. Assim, vislumbraremos um novo mundo possível, gestado no ventre deste mundo de hoje, como diz, poeticamente, Galeano.
"A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."
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