terça-feira, 19 de julho de 2011

Como Água Para Chocolate

"Cinema é como um sonho, como uma música. Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz; vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos escuros de nossa alma." (Ingmar Bergman)


Fizemos aqui em casa uma sessão de cinema. Algumas amigas, queijos, vinhos, conversa gostosa, filme de arte, discussão acalorada em meio a algumas digressões e boas risadas. O filme escolhido foi "Como Água Para Chocolate". A maioria já havia assistido a esse excelente filme mexicano, mas entre tantos maravilhosos - um deles era " A festa de Babette" -, decidimos assistir a ele, procurando compreender as nuances da proposta do diretor Alfonso Arau.

O filme narra a história de três gerações de uma tradicional família mexicana, com bastante sensibilidade e uma significativa carga metafórica, muito próprio do Realismo Mágico, típico de Gabriel Garcia Marquéz, com quem a obra dialoga. Baseia-se no livro homônimo de Laura Esquivel. O livro tem como subtítulo: "Novela de Entregas Mensuales, Com Recetas, Amores Y Remedios Caseros", com publicação em 1989. O subtítulo se configura como um paratexto bastante revelador da estrutura do romance.


O livro constitui-se de 12 capítulos. Cada um deles corresponde a um mês do ano. No entanto, a história não se passa nesse tempo e sim num tempo bem maior: começa com o nascimento de Tita de La Garza e acompanha toda a sua trajetória de vida, tendo como pano de fundo a Revolução Zapatista. O livro faz menção específica aos exércitos de Pancho Villa, uma vez que a história se passa no norte, num rancho próximo à fronteira México-EUA. É importante destacar que a história promove uma parábola da Revolução Mexicana, que derrubou o porfiriato militar-católico para instituir o governo socialista.

Cada capítulo traz uma receita - culinária ou não: há uma receita interessante de codorna com pétalas de rosas, mas também há uma receita de como preparar fósforos. Na verdade, são as instruções de preparo que vão conduzindo a narrativa. É a partir de um "libro de cocina", recebido de herança, que a narradora recupera a história familiar e amorosa de Tita (Lumi Cavazos), sua tia-avó, uma mexicana que viveu no fim do século XIX, início do século XX, e é a autora do "libro". O filme, que retrata bem o amor incompreendido, traz a comida como forma de comunicação e expressão de sentimentos contidos. Como Tita é a responsável pela cozinha do rancho, é através da comida que ela transmite seu amor, desejo, dor, nos pratos que prepara.

A história relatada traz como personagem central Tita (Lumi Cavazos), que nasceu na cozinha do rancho de sua família. O pai de Tita morre pouco depois, vítima de um infarto fulminante, por ter tido sua paternidade questionada. Tita fica sendo, então, a filha mais nova. Segundo a tradição local, a filha mais nova é impedida de casar, pois sua função na família deverá ser cuidar da mãe enquanto esta estiver viva. O problema é que, ao crescer, Tita se apaixona por Pedro Muzquiz (Marco Leonardi - que também atuou no excelente "Cinema Paradiso"), um jovem promissor do local. A mãe de Tita, em virtude da tradição, veta o casamento e sugere que Pedro se case com Rosaura, irmã dois anos mais velha que Tita. Pedro aceita o casamento com Rosaura com a intenção de ficar perto de Tita.

Muitas reflexões podem ser feitas a respeito do percurso da mulher e do respectivo cotejo com a história patriarcal. Tita é uma mulher insubmissa que, tendo como motivo um amor negado pela tradição familiar, luta pela ruptura dessa tradição, não demonstra aceitação, não acata subordinadamente sua condição mesmo numa sociedade patriarcal, e mesmo não podendo mudar essa condição. Impedida de expressar o que sente, Tita se dedica à cozinha, elaborando pratos que transmitem seus sentimentos a todos que deles se alimentam. É assim com o bolo do casamento de Rosaura que, temperado com suas lágrimas, provoca uma crise de choro coletiva nos convidados da festa; ou como na cena em que o desejo de Tita por Pedro é revelado pela codorna preparada com as pétalas da rosas que Pedro oferta a Tita, diante de todos e apesar deles. Ao comerem a comida assim preparada, todos à mesa sentem também a mesma pulsão sexual =- é uma cena maravilhosa em que, por meio da comida, Tita e Pedro concretizam o desejo sexual que toma conta deles.

Esse é, então, um mote que aponta para as diversas possibilidades no campo da comunicação. Além disso, demonstra o não assujeitamento da personagem: impedida de revelar seu querer e seu dizer, por uma mãe castradora que vigia todos os seus passos, Tita tem na elaboração dos pratos uma forma de comunicar seus sentimentos.

Como água para chocolate é uma expressão típica mexicana - uma expressão idiomática. No México, o chocolate quente é preparado com água quente e não com leite, como fazemos aqui. Para tanto, a água precisa estar fervendo. A expressão significa "estar fervendo de raiva" - ou de alguma outra emoção forte, como o amor. E é exatamente assim que a personagem central quase sempre está ao preparar seus pratos. Tita, ao preparar o "mole", prato mexicano, reflete sobre o poder do fogo e compreende sua função ao ter contato com os alimentos, o seu poder transformador, ou seja, é ele - o fogo - que transforma as massas em tortas, por exemplo; o peito que não foi tocado pelo fogo do amor não passa de uma massa sem utilidade, é um peito inerte, portanto é o fogo do amor o único capaz de transformar o ser e dar sabor à existência.

"Como Água Para Chocolate" é um filme lindo, diferenciado quanto à sua estética. O cinema latino-americano sempre viveu numa espécie de encruzilhada, envolvido num dilema entre fazer cinema de arte, influenciado pela estética europeia, ou fazer cinema para ter lucro, típico da proposta norte-americana. Em fins da década de 1980 e na década de 1990, fomos favorecidos com uma geração nova de cineastas latino-americanos, como o mexicano Alfonso Arau e o brasileiro Walter Salles, que conseguiram uma interface possível entre arte e lucro, com produções de sucesso junto ao público, sem que isso se constituísse uma heresia.

O filme recebeu boas críticas no ano de seu lançamento, 1992. Foi indicado para o Globo de Ouro (1993), como melhor filme estrangeiro. Recebeu os prêmios do público no Festival de Gramado (1993), como melhor filme, e o de melhor atriz (Lumi Cavazos) e melhor atriz coadjuvante (Claudette Maillé). Também recebeu 10 Prêmios Ariel (o Oscar Mexicano), entre eles: melhor filme, melhor atriz, melhor ator, melhor roteiro e melhor diretor.

Passamos os 105 minutos do filme a nos encantar com a proposta de Alfonso Arau para a leitura da obra de Laura Esquivel. Apaixonada que somos por Gabriel Garcia Marquéz e seu realismo mágico, nós nos deliciamos com as personagens fortes da trama, além do triângulo amoroso vivido por Tita-Pedro-Rosaura. Outras personagens nos inspiram: a imagem imponente da mãe - Mamá Elena, a irmã mais velha, Gertrudis, que é um exemplo de felicidade realizada ao fugir com um sargento zapatista em uma situação pra lá de inusitada, a cozinheira Nacha, que cuida de Tita como se fosse sua mãe; a empregada Chencha, que alegra o rancho com seu jeito divertido e brincalhão.

Acompanhar a vida de Tita nos fez lembrar do mito de Penélope, que esperou 20 anos pelo seu amor Ulisses, tecendo uma mortalha durante o dia e desfiando à noite, de modo que nunca a terminasse. É uma metáfora para simbolizar o amor verdadeiro, que não tem fim e tudo suporta. Lembramos também de Camões e seu soneto sobre a história bíblica de Jacó e Raquel:

“Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela
Mas não servia ao pai, servia a ela
Que a ele só por prêmio pretendia

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava contentando-se com vê-la
Porém o pai, usando de cautela,
No lugar de Raquel, lhe deu a Lia

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora
Como se a não tivera merecida

Começou a servir outros sete anos
Dizendo: mais servira se não fora
Para tão grande amor tão curta a vida”.

Lindo texto de Camões. Os versos finais são, para mim, os mais belos da literatura de língua portuguesa, por representarem a verdadeira entrega da qual o amor está imbuído.

Faz também lembrar as palavras de Mahatma Gandhi: “o amor é a força mais sutil do mundo”.



Lindo filme. Linda tarde. Recomendo a todos.



Barrinha MaynaBaby

2 comentários:

Unknown disse...

"Como Água para Chocolate". Filme belo,delicado, poético, artistico, por relatar em metáforas nada vulgares tanto amor e paixao8 reprimidos por tradições e costumes locais da época. Lumi Cavazos esta8 simplesmente magnífica; as tragedias psicológicas e distorções de comportamento são totalmente realisticas. Filme marcante.

Unknown disse...

"Como Água para Chocolate". Filme belo,delicado, poético, artistico, por relatar em metáforas nada vulgares tanto amor e paixao8 reprimidos por tradições e costumes locais da época. Lumi Cavazos esta8 simplesmente magnífica; as tragedias psicológicas e distorções de comportamento são totalmente realisticas. Filme marcante.