quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Bruno de La Rosa


Dono de uma voz marcante e de uma presença de palco que representa a exuberância de seu talento, Bruno de La Rosa é o grande nome novo no cenário da música brasileira. Nascido no Boqueirão (SP) e tendo vivido na noite santista, onde aprendeu muito sobre música e sobre as relações humanas, Bruno é um exímio instrumentista, compositor de primeira grandeza e um cantor de voz profunda e extensa. Seu timbre lembra muito o de Chico Buarque, e seu estilo também - impossível não relacioná-los - é clara a influência desse ícone da MPB na formação de La Rosa. O que, na verdade, é algo recorrente na arte, haja vista que cada artista se identifica com outros que tenham lhe servido de base, sem que isso represente cópia, imitação. Bruno de La Rosa tem identidade própria, é singular em sua pluralidade, tem uma assinatura particular, e isso lhe confere o mérito ao seu trabalho.

Numa época em que o público em geral dá ênfase a músicas mais palatáveis e menos densas, Bruno - que faz questão de dizer que não está imerso em um saudosismo doloroso e infértil - é um músico que gosta de beber na fonte, assim, é um apaixonado por músicas mais antigas, que estiveram na constituição do escopo da MPB e são referenciais importantes, uma vez que, para ele, não há como compreender a tessitura do presente sem um olhar cuidadoso sobre o passado.

No entanto, superando o clichê de que supostamente há música boa ou música ruim, Bruno diz que ouve aquilo de que gosta, que lhe emociona, que lhe faz sentir algo diferente dentro de si. Procura também ouvir de tudo, porque considera necessário uma amplitude auditiva, uma compreensão mais encorpada, justamente para estimular sua criatividade e torná-la mais rica.



Abaixo, seguem alguns vídeos com esse artista sofisticado, que esbanja simpatia e talento.










Barrinha MaynaBaby

domingo, 27 de novembro de 2011

Paralelos


Eram tão diferentes, tudo conspirava contra os dois, pouco havia de comunhão. Mesmo assim, aconteceu de seus destinos se cruzarem numa das voltas dessa roda-viva que se convencionou chamar existência.

Ele era um menino. Lindos olhos e sorriso desabrochado ao vento. Aliás, foi o sorriso que a encantou. Da vida, pouco sabia. Tinha a inquietação típica das almas prenhes de juventude, mas, ao mesmo tempo, um gesto manso. Era, a um só turno, meigo e arrebatador.

Ela era uma mulher. Uma mulher inteira, completa, de uma maturidade terna. Mas os olhos de menina revelavam uma personalidade vivaz, um caráter cativante. Tinha uma beleza madura e sensual, um jeito de se mover que fazia todos paralisarem diante dela, uma voz suave, um olhar meigo e adolescente que cativava e seduzia. Embora da vida tivesse muito o que dizer, tinha mesmo uma fome de viver legítima e apaixonante. A vida, para ela, era sempre agora.

Os dois se sabiam antes de se conhecerem. Quando se viram, logo entenderam que seriam um do outro. Nada foi combinado, definido antecipadamente. Não era preciso explicação, não se exigia esclarecimento. Bastava aquela compreensão de que o inevitável aconteceria.

Se para os dois, no seu mundo particular do amor, tudo era muito natural, para as outras pessoas, as mais próximas, aquilo era um desatino.

"Como Pedro vai se arrumar com uma mulher dessas? Não tá vendo que ela não tem idade para se envolver com garotos?". "Pouca vergonha, isso sim!".

"O que foi que uma mulher como Gabi viu num menino daqueles?". "Quase podia ser seu filho!". "O que ele tem a oferecer a ela?".

Gabi pouco queria saber o que Pedro oferecia. Ou melhor, sabia sim: Pedro oferecia seu afeto, oferecia seus carinhos tímidos, seu sorriso arrebatador. Oferecia sua juventude cheia de brilho, de movimento, de vida em pulsação latente. Isso fazia Gabi sentir-se uma menina, enrubecida pala sedução despudorada de Pedro.

Pedro, por sua vez, não via em Gabi suas marcas de expressão, enxergava para além disso, percebia a mulher forte e frágil ao mesmo tempo, a sua suavidade, a sua doçura, o seu desejo de viver em plenitude, a sua segurança tranquila e a forma mágica de sorrir e dizer "calma, tudo vai dar certo!". E dava. Impressionava a sua sensualidade madura e ao mesmo tempo inquieta, o olhar buliçoso, o jeito de sorrir abaixando os olhos, o modo de dizer baixinho "eu te amo!" ao seu ouvido, depois do amor.

No início, Gabi se sentia insegura. Foram tantas as decepções em sua vida que ela não acreditava despertar um interesse real, desprovido de intenções duvidosas. Havia criado uma espécie de couraça, uma capa protetora, para evitar sofrer. Mas isso era terrível para ela. Primeiro, porque era da sua natureza acreditar nas pessoas - e resistir a isso era difícil, quase um tormento; depois, porque essa resistência a fazia pensar que o problema estava nela, era ela - e não os outros - que não tinha predicados suficientes para fazer alguém interessante apaixonar-se por ela e desejar comprometer-se. Além disso, sentia-se só, queria viver uma linda história, mas achava que isso não mais aconteceria com ela.

Já Pedro sequer pensava em qualquer problema. Encantou-se por Gabi. Tinha por ela desejo. E, certamente, sentia-se mais forte junto dela, afinal era o menino que conseguia conquistar a mulher madura e bem resolvida. É claro que isso lhe dava uma sensação de poder. Mas conviver com Gabi foi lhe possibilitando maior amadurecimento. Pedro passava como um trator por cima de tudo, não media consequências; queria tudo para hoje, sem entender por que às vezes não podia ser assim - era ansioso e impaciente. Com Gabi, aprendeu a olhar para os lados, a perceber a beleza do caminho, a aproveitar o percurso, a rir dos tropeços, a esperar o tempo certo para colher as frutas.

Os paralelos de suas vidas se cruzaram. Sempre muito racional, Gabi dizia para si mesma que deveria ser uma ilusão de ótica, como acontece com os trilhos do trem; mas não era lá longe que se via esse entrecruzamento de emoções, era aqui perto, era no agora - desconsiderar isso era tentar negar o sentimento real que os encapsulava.

Enfim, ela decidiu que viveria um dia de cada vez, que não queria a felicidade toda em dose única, como no fim de um filme, queria em prestações diárias. Acordava de manhã, enchia os pulmões de ar, olhava para Pedro que dormia um sono manso e despreocupado, e decidia que seria feliz naquele dia.

Assim seguiram com suas vidas, com o pacto de que iriam procurar se compreender antes de qualquer embate, sabendo que, no núcleo do respeito que nutriam um pelo outro, havia sinceridade de intenções. Era um pacto muito simples: seriam amigos, antes de serem amantes - jamais deixariam de ser, porque seriam de um tipo raro, os verdadeiros, e sendo assim não haveria possibilidade de mutação - seriam amigos a vida inteira, que é como são os amigos de verdade.

Preocupados em garantir a felicidade do outro, esqueciam a busca frenética por lampejos fugazes de felicidade particular; queriam uma felicidade compartilhada, uma felicidade plural. E perceberam que ela não está nos momentos apoteóticos, está nos gestos simples, nas coisas mais prosaicas, nas revelações cotidianas do amor.

Seguiram assim suas vidas, enredados numa teia de generosidade e delicadeza que constituía a tessitura desse sentimento que se expandia e se dilatava dentro deles.    
Barrinha MaynaBaby

sábado, 26 de novembro de 2011

Salve, Jorge!


Quem me conhece sabe da minha paixão por Jorge vercilo. Sou fã de carteirinha, não apenas de seu talento, mas de sua personalidade, de seu gesto sempre muito amável e generoso, da forma carinhosa e gentil de interagir com seu público. E como se isso não bastasse, é bonito e cheio de charme, dono de um sorriso que nos deixa derrubadamente enfeitiçadas. Um show de Vercilo é delicioso. Entre tantos a que já fui, um deles me marcou, porque a paisagem foi um complemento importante para a magia daquele momento: um que aconteceu em Recife, no cais do Catamarã, às margens do Capibaribe. Sem dúvida, uma cena que ficará gravada para sempre na minhas retinas.

Suas composições são extremamente sofisticadas do ponto de vista imagético. O uso impecável de figuras de linguagem, o modo particular de dizer as coisas fazem de suas letras algo maior - para além da discussão quanto aos gêneros do discurso, suas letras são verdadeiros poemas, delicados e profundos ao mesmo tempo. É o caso de Fênix, Asas Cortadas, Encontro das Águas e Avesso, entre tantas outras.

Vercilo fala das coisas mais prosaicas com graça e de forma surpreendente, fugindo ao lugar-comum. Em Avesso, o autor diz: "você pode me encontrar no avesso de uma dor" - tem forma mais interessante para falar de prazer e ainda assim, manter-se dentro do mesmo campo semântico da letra - que fala de sofrimento? Fazendo uso rasgado da poeticidade,Vercilo nos faz sonhar: "enfim, passeia tua boca em mim até me calar", faz desejar um beijo assim - fundo e calmo até a alma se sentir beijada, como diria Chico Buarque.

O repertório desse cantor, compositor e violonista carioca, formado em Jornalismo, é marcado, portanto, por canções de lirismo profundo. Com um trabalho sério e altamente produtivo, Vercilo realiza seu sonho, que é conseguir gravar as músicas que compõe do seu jeito. O músico, que teve como principal influência Djavan, uma referência na música popular brasileira, gravou seu primeiro disco - Encontro das Águas - em 1993. Desde então, são 14 CD e 5 DVDs.

Uma delícia ouvir suas músicas. Sempre. Deixo, então, para vocês, meus queridíssimos amigos, algumas músicas de que gosto muito. Espero que se encantem, beijo dos grandes a todos.








Barrinha MaynaBaby

Florbela Espanca


Em vida, Florbela Espanca foi praticamente ignorada pela crítica, e mesmo pelos apreciadores de poesia. Isso lhe causou uma angústia tão significativa que fez com que perdesse a vontade de viver. Na verdade, desde seu nascimento, foi marcada pelo incomum e pelo dramático. Filha de João Maria Espanca, Florbela tinha como mãe uma mulher escolhida para concebê-la, mas que não era esposa de João Maria. Esta - Maria Toscano - não podia ter filhos e, cumprindo uma tradição medieval, João Maria escolhe uma mulher com quem possa ter filhos, Antônia da Conceição Lobo, com quem também teve outro filho - Apeles. Abandonados por Antônia, Florbela e Apeles passam a viver com João maria e sua esposa.

Desde cedo, Florbela vê aflorar sua veia poética, assim como também desde muito cedo demonstra propensabilidade para a melancolia. Aos 7 anos (1903), escreve seu primeiro poema - "A Vida e a Morte" - cuja temática e tessitura desvelam um caráter taciturno e sombrio, claramente melancólico, o que se constituirá na tônica de seu fazer poético.

Adicionar legenda
Alguns fatos - além do seu nascimento - contribuíram para o ensejo dessa melancolia que a acompanha por sua breve jornada. Florbela casa-se três vezes - nos dois primeiros casamentos, frustração e tristeza: o primeiro separa-se dela para viver  com uma empregada da casa, com quem mantinha um caso não tão velado, obscurecido apenas pelo silêncio complascente de Florbela. Dois abortos espontâneos impediram sua maternidade, sendo o segundo responsável pela sua segunda separação, o que faz com que sua família corte relações com ela.Em 1927, morre Apeles, seu único irmão, em um trágico acidente. Florbela, que desde o segundo aborto demonstrava sinais claros de neurose, abala-se sobremaneira e tem sua doença agravada de maneira importante - nunca mais Florbela foi a mesma. Envolve-se sofregamente na produção de Máscaras do Destino, livro de contos dedicado ao seu irmão. Em 1930, aos 36 anos, Florbela encerra o Diário do Último Ano com uma frase significativa: "... e não haver gestos novos nem palavras novas". No dia 8 de dezembro deste ano, data de seu nascimento, Florbela põe fim à sua vida, ao ingerir dois frascos de veronal.   

Publicou em vida dois livros de poesia, Livro da Mágoa (1919) e Livro de Soror Saudade (1923), ficando Charneca em Flor (1931), Juvenília (1931) e Reliquiae (1934) para serem publicados postumamente. Seus versos são fortes, viscerais, denotam exaustão e desilusão, desencantamento, com uma carga importante de sensibilidade. Considerada a figura mais importante do universo poético português, sua obra se constitui num misto de evocação de suas próprias experiências amalgamados à sua fantasia e criação estética.
Impossível não se envolver na profundidade ensejada nos textos de Florbela.


Fanatismo


Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não é sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo, tudo passa..."
Quando me dizem isso, toda a graça
Duma boca divina fala em mim
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah, podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como um Deus: Princípio e fim!"


Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E é ele, ó meu amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

De Cara Com a Verdade


Uma de minhas escritoras preferidas - Clarice Lispector - tem uma lucidez que me impressiona e uma forma de escancarar nossa realidade referencial que muitas vezes me desconcerta, talvez porque esteja certa no que diz, porque nos coloque de frente para a verdade, o que, de certo modo, é um choque.

Uma dessas situações me ocorreu ao ler Laços de Família. Uma das frases a respeito de Ana, personagem do livro, diz: "ela se enchera da pior vontade de viver". Fiquei pensando nisso e em suas implicações.

Há, de fato, as "boas" vontades, aquelas que são socialmente aprovadas, fazem parte do script que alguém escreveu para nós, que não causam incômodo e satisfazem a opinião pública. Podem não nos fazerem felizes, mas, por se revestirem de uma áurea de santidade, do politicamente correto, do que alguém disse que era o certo - ou o melhor - a fazer, então são permitidas e são as que devemos seguir, sem argumentar ou refletir se é o que de verdade queremos. Seguimos adiante, obedecendo ao roteiro que foi escrito por outras pessoas e homologado, sem nos ater ao que de fato queremos - e, com isso, seguimos sublimando, negando impedindo a concretização de nossos desejos reais e, que, como tais, são legítimos - ainda que não aprovados.

A pior vontade de viver é extremamente complexa, por vezes angustiante, já que em algumas situações se choca com o que aprendemos ser lícito, e nos fazem quebrar certos paradigmas. Mas se paradigma é um modelo construído e internalizado, então é algo que pode ser quebrado, que pede superação. Não precisamos ficar estagnados. Aliás, a vida é um processo dinâmico e nos lança no ensejo de mudanças, que nos reestruturam e nos tornam maiores.

Somos seres subjetivos e intensos, e muitas vezes o que queremos é entrar naquele quarto proibido. A propósito, proibido por quê? Por quem? Até que ponto precisamos deixar de seguir o real e válido em nossa existência? Por que devemos nos impedir de sermos felizes? Quais são nossos reais limites?

Se é para sermos felizes que viemos ao mundo, por que sonegar sentimentos, fazer rigorosamente o que manda o script, ainda que estejamos, com isso, nos sabotando emocionalmente?

Pode soar subversivo. Pode não parecer muito ético.Mas é a verdade. Por isso, a perplexidade diante da fala de Clarice. E a questão é: se é verdadeiro, então é o certo para nós. Viver uma mentira é que não é muito ético, não é o correto.

É fato que, assim como Ana (a personagem de Clarice em Laços de Família), muitas vezes nos enchemos dessa "pior" vontade de viver. Queremos mais e melhor. Uma vida mais intensa e mais cheia de poesia. Queremos deixar de ficar apenas olhando pelo buraco da fechadura. Queremos entrar num mundo novo, mais colorido, com mais sabor. Para isso, é preciso abrir mão de certas coisas do nosso mundo anterior e enfrentar o olhar de reprovação daqueles que homologaram nosso roteiro de vida e que, sem considerar o que é melhor para a nossa felicidade, são severos num julgamento equivocado e injusto.

É preciso legitimar nossos sentimentos reais, verdadeiros. Aprová-los em nossas vidas e colocá-los na ordem do dia. É preciso nos permitir viver tudo o que podemos para tornar a nossa passagem nesse mundo numa experiência radiosa e plena.
Barrinha MaynaBaby

sábado, 8 de outubro de 2011

Pela Lente da Alteridade



Tenho três filhos. Dois meninos, uma menina - filha do meio. Esta é uma moça linda e adorável - mas extremamente alérgica. Sofre de asma e é sempre um tormento em época de crise, quando praticamente nos mudamos para o hospital.

Foi num desses hospitais, numas dessas situações de crise, que me ocorreu um fato interessante. Não era um hospital novo. Normalmente íamos a ele. Há, no hall principal, uma cafeteria, aonde sempre vou quando tudo está mais normalizado. A pessoa que me atende é sempre a mesma. O que quer dizer que já tivemos vários encontros.

Mas nosso último foi diferente. Fiz todo o ritual de sempre, aflita com a respiração da minha filha, e quando tudo ficou mais tranquilo, muitas horas e várias nebulizações depois, fui tomar um café. E desta vez algo diferente - fora do script - aconteceu. Fiquei em pé, no balcão, tomando lentamente meu café, pensando na vida e observando a simpática atendente. É uma moça simples e agradável. E eu, que puxo conversa até quando peço informações, ao me ver sozinha com a moça, começo a conversar e a deixá-la falar sobre aquilo que desejasse.

Saber ouvir é uma característica minha. Gosto muito de ouvir as pessoas, tenho paciência para escutá-las, tenho paciência para permitir que elas falem sem interrompê-las, ou sem necessitar falar na mesma proporção. Foi assim nesse dia. Deixei que a moça falasse e me surpreendi com sua clareza de espírito, com a forma segura e ética como entendia a vida. Escutei-a falar sobre família, cuidados com filhos, relacionamentos, desejos e aspirações, sobre como conduzia seus objetivos, o que fazia para alcançá-los, sempre com muita lucidez. Aprendi muito com aquela moça, que já tinha mais de trinta, mas com uma cara de menina.

Prestar atenção ao que ela tinha para dizer me proporcionou um momento bom de reflexão. Enquanto ela falava de sua vida e de como se comportava em sua jornada, ia pensando na minha, nos meus atos, nos meus movimentos. O interessante é que fiquei surpresa. Não esperava que aquela conversa inicialmente despretenciosa me fizesse pensar sobre tantas coisas. Também não esperava tanta profundidade no vão de uma conversa simples num café.

Saí dali para voltar a dar atenção à minha filha, levando mais que suco de laranja e croissant. Saí dali pensando também  que muitas vezes perdemos a chance de crescer como pessoa, de aprender coisas novas, de ver a vida por outras perspectivas, só porque não ouvimos o outro. Ao invés de falar esquizofrenicamente sem prestar atenção ao que está ao nosso redor, devemos nos permitir ouvir o que os outros têm a dizer, porque isso tem um duplo papel: é um ato de generosidade - quantas pessoas não precisam de alguém que as escute com atenção e interesse? - e é uma oportunidade de crescimento, de desdobramento em algo maior, que vai além de nosso mundo particular, de nossa lente pessoal, e faz com que nossa visão se alargue diante de uma grande angular.



Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Onde é a quadrilha?

"Uma vida completa pode acabar numa identificação 
tão absoluta com o não-eu que não haverá
mais um eu para morrer".
(A Paixão Segundo G. H., Clarice Lispector)


Sábado à tarde fui passear com meu filho no shopping. Fomos fazer os programas de que ele gosta: cinema, game, lanche na Mac, comprar brinquedo na RI Happy (dessa vez era um beyblade - que eu só descobri o que era quando vi, porque segundo a descrição do meu filho era "um pião que não é um pião, mãe!"). Na saída, havia um espaço de diversão: era uma pista de autorama e outra de minigolfe. Deixei meu filho lá e fiquei no café em frente, tomando um capuccino.

Enquanto tomava o café, ia me distríndo vendo as pessoas passarem. Foi então que me dei conta de uma coisa engraçada: um número realmente grande de pessoas usando roupas quadriculadas. Camisa xadrez por cima de outra básica, vestidos, calças. Moças e rapazes assim. Muitos. Todos iguais.

Moro em Recife. Aqui, como em todo Nordeste, a tradição junina é muito forte. Mas já estamos em setembro. Nem nos lembramos mais de São João. Agora os preparativos são para o Natal e o Carnaval de 2012. Então, por que tanta roupa xadrez? Alguém me diria que é a moda. Mas é preciso mesmo estarem todos iguais para seguirem a moda? Houve um tempo em que usar camisa xadrez era apenas em época de São João, do contrário era um "mico". Hoje todos usam, porque alguém disse que deveria ser assim: os menininhos e menininhas mais descolados usam, então todos seguem atrás. O problema é que em algumas pessoas nem cai bem.

Há alguns anos, uma propaganda interessante circulou nos meios midiáticos. Entre outras coisas, ela trazia uma frase da qual eu sempre gostei: "não há nada mais ridículo do que você querer ser o que não é só porque está na moda". A moda faz parte de nossa cultura, e ela nos afeta mais do que imaginamos. Não há motivo de declarar guerra a ela. Não é essa a questão. Mas há uma ditadura sem sentido (como aliás, em qualquer ditaduta).

Eu usaria uma camisa xadrez. Acho inclusive bonitinho. Mas não sinto urgência em comprar uma só porque todos estão usando. É essa aquestão. Lembro de ter ouvido uma conversa entre mãe e filha em que a menina - uma adolescente super fofa - fazia o seguinte comentário: "Preciso comprar uma camisa xadrez, mãe! Todas as minhas amigas têm, menos eu". Como assim precisa? Eu me pergunto: "E daí? Qual o problema de não ter objetos que outros têm? Qual a necessidade de ser exatamente igual aos outros, como se tivéssemos sido feitos em série?"

Seguimos sim os mesmos padrões, porque vivemos em sociedade, sendo assim, temos uma cultura que nos define como sendo um grupo particular, nos dá identidade. Mas somos sujeitos também singulares, podemos ser diferentes e a diferença nos permite crescer, ampliar - e é o que nos destaca do grupo - nos faz únicos, em nossa pluralidade.

Além disso, é preciso usar aquilo que nos faz bem, porque de fato gostamos, porque é confortável, porque nos dá prazer, enfim... Isso é legítimo. O que não é é alegar que se quer comprar algo porque todos têm e isso obriga a ter também.

Tenho 40 anos. Este é um blog dedicado à leitura - seja de textos (em suas mais variadas configurações), seja do mundo, da vida. Era de se esperar, pela idade desta modesta blogueira e pelo teor do blog, um template mais sóbrio, que remetesse à profundidade e seriedade que, de certa forma, isso implica. Em vez disso, borboletas rosa, flores liláses e azuis, em tons pateis. Fazer o quê? Gosto de rosa (meu guarda-roupa está cheio dele), de flores e borboletas. Posso ficar bolando uma série de analogias e simbolismos para essas figuras, mas no fundo as uso porque gosto delas, acho lindas. E isso não faz de mim mais superficial nem mais profunda. É apenas a manifestação do que eu gosto - sou eu, exercendo o meu direito de ser eu mesma.
Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Faça

Quando se quer que as coisas aconteçam, é necessário agir - sair da zona de conforto e tomar as atitutes necessárias. Esperar placidamente não resolve. É claro que nem tudo depende de nós, do nosso esforço. Mas ficar sem ação e se lamentar depois que nada aconteceu e não se conseguiu aquilo que se queria não faz o menor sentido. Eu não sou muito afeita a livros de auto-ajuda, do tipo "O poder sem limites" ou "O poder está dentro de si", mas acho que o olhar e a atitude que temos diante da vida faz uma grande diferença.

Estava pensando nisso enquanto assistia pela enésima vez ao filme Sob o sol da Toscana (2003), de Audrey Wells. O filme conta a história de Frances, uma escritora interpretada pela talentosa Diane Lane (Mar em Fúria e Infidelidade). Começa com Frances vivendo uma crise pós-divórcio, numa letargia doída que comove sua amiga Patti, personagem de Sandra Oh (a Drª Cristina Yang, de Grey's Anatomy), que decide dar de presente a Frances uma viagem de 10 dias pela Toscana, no coração da Itália. É então que o inesperado acontece: Frances, num impulso legítimo e produtivo, compra uma casa praticamente abandonada, chamada Bramasole - "algo que anseia pelo sol". De posse da nova casa - um novo projeto para sua vida - se envolve na reforma, à medida que vai conquistando novas amizades, se familiarizando com a cultura local, o estilo de vida, e vai redescobrindo prazeres esquecidos, como o de sorrir, percebendo que a tristeza e a sensação de estar sem chão não dura para sempre e que ela pode se apaixonar mais uma vez. Ou seja: ainda que nossa jornada seja incerta, há sempre uma segunda chance. Mas é preciso estar aberto para isso. Frances se permitiu uma nova oportunidade, deu um novo sabor à sua vida. Foi intensa. E fez o que precisava para seguir adiante, para não ficar atolada nos pântanos do passado.

A fotografia do filme é espetacular. Os personagens são fantásticos. Alguns emblemáticos, como o velho com flores e a atriz. Mas um elemento é a peça-chave: o uso constante do simbolismo. A partir do nome da casa - Bramasole - que nos convida a nos abrir para o novo, a deixar o sol entrar na nossa vida, nos iluminar a existência. Outro símbolo importante é a reforma - Frances parte numa reforma da casa, mas que também significa reformar seu mundo interior e sua vida prática também. Para tanto, ela necessita de bons parceiros. Precisa também ser cuidadosa, porque toda reforma inclui certo risco; também é cansativo e em certo momento podemos perder a paciência e querer que acabe logo; é um investimento financeiro (e emocional) e às vezes temos receio do quanto vai custar. É preciso sempre ousadia para reformar o que está velho, mas o resultado é compensador. Outro símbolo é o número três - Esse é um número recorrente no filme: Frances leva consigo três caixas em sua mudança; a casa que compra tem três séculos de construída; nela, há três quartos; os trabalhadores que a ajudam na reforma são três; três também são os homens de sua vida (o ex-marido, o amante e o novo amor); Frances faz três preces para a imagem que está na cabeceira de sua cama. O 3 é número cabalístico, cuja interpretação está relacionada ao equilíbrio e à união: 3 figuras da santíssima trindade; três poderes do Estado; três dimensões da condição humana etc. A fonte é mais um símbolo utilizado no filme - uma torneira no meio de sua sala é usada para remeter à própria essência da alma de Frances. De início, Frances nem percebe sua existência; depois, ao enxergá-la, vai abri-la e percebe que ela está seca - em associação ao que diz sua amiga italiana: "você parece um buraco negro", para dizer que ela está seca por dentro. Depois a torneira começa a pingar, indicando que a vida inicia novamente - cada pingo é o indício de que a vida começa a fluir de novo - simboliza o rejuvenescimento. Outro símbolo presente é a figura da joaninha. Esse é um inseto simpático e delicado. Segundo dizem, quando ele escolhe nosso dedo para pousar é sinal de que somos afortunados e temos direito a um pedido - prestando atenção para o lugar para onde ela irá voar, pois é de lá que virá a sorte. Seguindo a crendice popular, o filme mostra na cena final, quando Frances se recosta na cadeira para descansar, uma joaninha pousando no seu braço, querendo indicar que finalmente a vida dela se encherá de ânimo novo, com sorte, felicidade e amor.

Sempre me encanto com esse filme. A alguns pode parecer inicialmente uma proposta açucarada. Mas se mergulhamos na sua tessitura, podemos compreender as peças que engendram nossa própria existência, tecida com fios da realidade tanto quanto do sonho. Mas de tudo o que aborda o filme, para mim, o mais marcante é a atitude da personagem - ela parte para uma nova etapa de sua vida, mesmo com todos os conflitos, todos os receios, toda a carga emocional em que está envolvida dadas as circunstâncias - ela age, se movimenta - faz alguma coisa - sai do plano para a ação. Nem bem há um plano, e talvez seja isso mesmo, não dá planejar cada passo de nossa vida sem ser um pouco neurótico - e a neurose não nos é bem-vinda.

Isso me lembra uma música de Lenine: "Do it", em que ele diz literalmente: quer alguma coisa? Faça: "corra atrás da lebre". Deixo a letra e o vídeo abaixo para vocês fazerem suas reflexões.

Xero dos grandes a todos.


DO IT  (Lenine)

Tá cansada, senta
Se acredita, tenta
Se tá frio, esquenta
Se tá fora, entra
Se pediu, agüenta
Se pediu, agüenta...
Se sujou, cai fora
Se dá pé, namora
Tá doendo, chora
Tá caindo, escora
Não tá bom, melhora
Não tá bom, melhora...
Se aperta, grite
Se tá chato, agite
Se não tem, credite
Se foi falta, apite
Se não é, imite...
Se é do mato, amanse
Trabalhou, descanse
Se tem festa, dance
Se tá longe, alcance
Use sua chance
Use sua chance...
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô!, Hum!...
Se tá puto, quebre
Ta feliz, requebre
Se venceu, celebre
Se tá velho, alquebre
Corra atrás da lebre
Corra atrás da lebre...
Se perdeu, procure
Se é seu, segure
Se tá mal, se cure
Se é verdade, jure
Quer saber, apure
Quer saber, apure...
Se sobrou, congele
Se não vai, cancele
Se é inocente, apele
Escravo, se rebele
Nunca se atropele...
Se escreveu, remeta
Engrossou, se meta
E quer dever, prometa
Prá moldar, derreta
Não se submeta
Não se submeta...
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô, Hum! Nanananã!
Hê Hô! Hum!...(2x)


Barrinha MaynaBaby

sábado, 3 de setembro de 2011

Crônica do Amor

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?

Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados. Não funciona assim.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó! Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.

Arnaldo Jabor
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A Flor do Pajeú


Estive há pouco numa cidade que eu ainda não conhecia. Fazia tempo que queria ir até lá, sempre ouvi falar de seus encantos, o clima gostoso, bem frio, em contraste com a região em que está incrustrada - o sertão do Pajeú -, a paisagem, com cachoeiras incríveis, e uma lagoa bem no meio da cidade. Não fica tão longe assim de Recife, onde moro. São 402 km de distância. De carro, 6 horas. Já fui mais longe que isso dirigindo. Mas, embora sempre desejasse ir, faltava oportunidade. Ou faltava decisão.

A cidade faz parte do Circuito do Frio. Eu já tinha ido aos festivais de todas as outras cidades do circuito: Garanhuns, Gravatá, Psqueira, Taquaritinga, para ver a efervecência cultural, as pessoas de diferentes tribos passeando, as propostas diversas, e os shows também. Chegava antes pra ver a cidade ainda calma, mas já entrando num bulício interessante, num movimento ritualístico. A essas cidades também já tinha ido em outros contextos para descansar e descobrir seus recantos preciosos. Faltava Triunfo.

Fui a Triunfo em época de calmaria e pude ver a cidade como ela realmente é. Estava num grupo pequeno - 7 pessoas, das quais 3 ainda não conhecia: um casal e uma amiga deles. Eu me apaixonei completamente pela cidade. Sabe aquele encantamento e a sensação de algo maior crescendo dentro da gente? Foi isso que eu senti. Íamos subindo a serra e meus olhos íam se deliciando, à medida que minha expectativa aumentava. Quando entramos na cidade, parecia que estava entrando em outra dimensão. É uma cidade simples, tranquila, mas há nela uma atmosfera diferente, alguma coisa que ainda não havia sentido em outros lugares aonde fui.

Ficamos numa pousada de freiras, muito conhecida na região, a Pousada Santa Elizabeth. Não é sofisticada, mas extremamente agradável. Um café da manhã que me lembrou os que eu tomava na chácara de minha avó, em Igarassu, onde ela morava, e onde brincava com meus primos, tirando fruta do pé: manga, caju, sapoti, maracujá açú, pitanga, carambola... E araçá. Havia sempre geleia de araçá na casa de minha avó. Quando acordo na primeira manhã em Triunfo e vou com os amigos tomar o café da manhã, encontro aromas e sabores diversos, e entre eles geleia de araçá. Aquele café da manhã tinha o sabor da minha infância.

 Fizemos os passeios tradicionais. Fomos às cachoeiras, uma delas, a Cachoeira das Pingas, tem um conjunto de duas quedas: a primeira forma uma piscina e nela tomamos um banho delicioso, a segunda tem uma queda de 50m - do alto, uma cena deslumbrante: avistamos, extasiados, parte do vale do Pajeú; visitamos uma caverna chamada Furna dos Holandeses, conhecemos a gruta de João Neco - uma figura folclórica, que nos recebe carinhosamente de foice na mão; a gruta tem um poço de 20m, com uma água límpida, construído em 1932; fomos também a um engenho onde conhecemos o processo de fabricação desde a chegada da cana-de-açúcar até o processo final com as fornalhas de rapadura e os barris de envelhecimento da bebida, e onde também encontramos uma bodega, para comprar cachaça  branca e envelhecida, licor de cana e rapadura de diversos sabores; fomos ao Pico do Papagaio, a 1.260m de altura - o teto de Pernambuco, com um mirante natural de beleza indescritível; compramos café torradinho na hora (o sabor do café moído e torrado na hora e adoçado com rapadura não tem igual); fizemos todas as trilhas a bordo da rural de seu Antônio e, por último, passeamos de teleférico. Enfim, vivemos nosso momento de turistas.

Mas, depois disso, fui andar pela cidade, subindo e descendo as ruas, sentando nas praças, conversando com as pessoas, sempre muito hospitaleiras e amáveis. Numa noite, assisti a um festival de repente, promovido por um bar local e que aconteceu no meio de uma praça superaconchegante. Fiquei um tempo sentada em frente à lagoa, agasalhada do frio de 14º. Aquela paisagem me pareceu mágica. Fiquei pensando que parte dessa magia se devia àquela água, geradora de vida, como toda água, em sua fecundidade emergente.

Sonhei com um lugar assim para morar. Talvez futuramente...

Mas outra coisa também me passou pela cabeça, em meio aos devaneios: por que passei tanto tempo para ir a um lugar a que há muito desejava ir e que, realmente, me proporcionou tantos bons momentos, a ponto de desejar revivê-los e fazer planos com eles? Por que adiamos certas coisas em nossas vidas? Não estamos prontos? Não é o momento? Temos outras coisas mais importantes para fazer?

O interessante é que tomei a decisão de ir num impulso. Não tinha planejado tudo. Apenas deixei acontecer. Numa noite, conversando com amigos, soube que iriam a Triunfo. Comentei: "tenho tanta vontade de conhecer!". Eles me perguntaram: "Por que não vai com a gente?". E eu disse: "Por que não?". E fui.

Algumas vezes precisamos desses impulsos. Não quero dizer que devemos ser irresponsáveis. Mas não podemos planejar 100% a nossa vida. Nem é saudável isso. Às vezes é preciso deixar fluir, apenas permitir que as coisas aconteçam. É preciso correr o risco de ser feliz. Nietzsche nos segreda algo importante: "é preciso perder-se quando queremos aprender algo das coisas que nós próprios não somos". Será o medo da descoberta, do novo, e do novo em nós, o que nos impede de nos lançar mais na vida?

Podemos ter duas posturas antagônicas diante de nossos sonhos, desejos, aspirações: ir atrás deles, com energia e paixão, ou deixar que eles escorram por entre os dedos, como água a descer pelo ralo. Talvez, entre tantas sensações terríveis que é possível ter, a que sentimos ao perceber que perdemos a oportunidade de fazer algo que verdadeiramente amamos é a mais doída.

Woddy Allen, no filme Crimes e Pecados, diz uma fala que me fez pensar: "somos a somas de nossas decisões". Sejamos, então, como propõe Pessoa, grandes por sermos inteiros, por colocarmos tudo de nós em cada coisa que fazemos, por nos permitir arriscar e crescer, por desejar e buscar sermos felizes, por saber manter nossa essência, na medida em que buscamos novas cores para nossa existência, já que, como nos diz Clarice Lispector: "sou sempre a mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre".

Barrinha MaynaBaby

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

À luz de Paracelso

"Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem
ao mesmo tempo, como as cerejas, não sabe nada a respeito das uvas". (Paracelso)


Esperar das pessoas um comportamento linear, regular, condinzente com nossos desejos e expectativas, é fadar-se ao insucesso e à frustração. É preciso paciência, constância e certeza do que se quer; é preciso tranquilidade para esperar que nossos desejos se realizem no tempo certo; é preciso, por fim, resignação quando da colheita não se conseguirem os frutos desejados.
Barrinha MaynaBaby

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Ainda sob o signo de João Cabral



Um dos curtas mais importantes e premiados da cineasta pernambucana Kátia Mesel é Recife de dentro pra fora (1997), vencedor de 26 prêmios em festivais nacionais e internacionais, entre os quais destacamos o de melhor fotografia, no festival de Gramado, e o de melhor documentário, no Festival Internacional de Curta Metragem de Bilbao, na Espanha. O filme é um documentário, com duração de 15 minutos, sobre o rio Capibaribe. É baseado no poema O cão sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto. No documentário, assim como no poema de João Cabral, há uma importante denúncia social. O caráter crítico permeia toda a obra, desnudando o que a sociedade anseia esconder, ao mostrar todas as faces do rio, do mar, do mangue, de sua ligação intrínseca com a cidade e com a miséria, numa perspectiva diferente: de dentro do rio para fora, para a cidade que o margeia, como diria João Cabral: "com imagens tanto mais fortes quanto mais diferentes são as realidades que as aproximam".

O poema de João Cabral é dividido em quatro partes: I- Paisagem do Capibaribe, II- Paisagem do Capibaribe, III- Fábula do Capibaribe, IV- Discurso do Capibaribe. O texto mostra o rio para além de sua condição de cartão postal da cidade, mas como parte integrante, fundamental, inseparável do todo que constitui a essência do Recife, mostrando-o como meio de subsistência, como local de formação de mangue e berçário de caranguejos, como local de brincadeiras de meninos moradores de casas ribeirinhas, como cenário de contemplação nos quintais das famílias ricas da região, como via de locomoção, enfim como elemento inescapável da cena recifense.

De todos os elementos que compõem a imagética deste poema, talvez um dos mais bonitos e fortes seja o que é representado nos versos abaixo, sobretudo por mostrar a relação simbiótica entre o homem e o rio, e por desvelar a desumanização do homem, sua coisificação, em função das carências que sofre e que o afastam de sua condição humana mais digna:

"(...) Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem. (...)"

No curta, estão presentes os versos de João Cabral, não exatamente na ordem que o autor lhe dá, em seu texto original, mas de acordo com o olhar e a proposta da cineasta. Os versos ora são recitados, ora são cantados, por Elba Ramalho, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, que musicaram o poema. O resultado é belíssimo, comovente. A letra refinada de João Cabral, com os acordes sofisticados desse trio de primeira grandeza é, sem dúvida, um deleite.

Abaixo, estão o curta (em duas partes) e o poema na íntegra. Espero que se deliciem com eles. Beijo a todos.









O Cão Sem Plumas

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se
em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado

à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
Barrinha MaynaBaby

Nas Sendas de João Cabral

                                                      
 Tecendo a Manhã
  João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


Sou absolutamente apaixonada por esse poema de João Cabral, sobretudo por sua sonoridade e pelas imagens delicadas que ele permite. Há nele passagens lindíssimas. O poema se estrutura em duas partes - representadas pelas duas estrofes que o compõem. E é a partir do significado dos dois primeiros versos que o poema é construído: "um galo sozinho não tece a manhã / ele precisará sempre de outros galos", de maneira que é o canto conjunto dos galos o elemento responsável por compor a manhã. Isso se evidencia nos versos seguintes (3, 4, 5, 6), que, por não estarem concluídos - a estrutura sintática não está completa - indicam continuidade eencadeamento: assim como o canto dos galos - antes de terminar um, outro galo já começa a cantar, como em resposta ao anterior, e assim acontece subsequentemente, de modo que "se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo".

Nos versos "para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo entre todos os galos", a imagem criada associa-se ao nascimento da manhã. Isso também é evidenciado em outros versos, cujos elementos criam a mesma imagem de manhã sendo tecida:
uma tenda - onde entrem todos
um toldo - livre de armação, em que todos se "entretendam"
tecido aéreo
luz balão

É comum, na poética de João Cabral, o tema do fazer poético. Cabral compôs inúmeros metapoemas, ou seja, poemas que falam sobre como os poemas são compostos. Este texto de João cabral também se insere nessa categoria, se considerarmos a tessitura da manhã como uma metáfora para falar da tessitura do texto poético.

Há também, em João Cabral de Melo Neto, um importante investimento na forma, uma vez que ele se preocupa em construir o poema palavra por palavra, assim como om operário constrói o edifício tijolo por tijolo, esquadrinadamente. É o próprio Cabral quem fala: "sou um poeta intelectual, ñão sou lírico; sou um poeta construtor, construtivista, e não um poeta espontâneo".






Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ser ou não ser de ninguém?

Esbarrei recentemente num texto superinteressante de Arnaldo Jabor sobre como andam as relações afetivas nesse mundo de meu Deus. Interessante seu olhar superlúcido, altamente esclarecido a respeito de um fenômeno do mundo moderno: a falta de compromisso nas relações, a necessidade de não formar vínculos, o medo de ligar-se ao outro e com isso se expor, expor seus sentimentos, seu mundo interior. Reproduzo o texto abaixo, para que todos possam refletir também. Superbeijo, queridos.

"Na hora de cantar, todo mundo enche o peito nas boates, nos bares, levanta os braços, sorri e dispara 'eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também'.
No entanto, passado o efeito do uísque com energético e dos beijos descompromissados, os adeptos da geração "tribalista" se dirigem aos consultórios terapêuticos, ou alugam o ouvido do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição.
A maioria não quer ser de ninguém, mas quer que alguém seja seu. Beijar na boca é bom? Claro que é! Se manter sem compromisso, viver rodeado de amigos em baladas animadíssimas é legal? Evidente que sim. Mas por que reclamam depois?
Será que os grupos tribalistas se esqueceram da velha lição ensinada no colégio, que diz que "toda ação tem uma reação". Agir como tribalista tem consequências, boas e ruins, como tudo na vida...
Não dá, infelizmente, para ficar somente com a cereja do bolo - beijar de língua, namorar e não ser de ninguém. Para comer a cereja, é preciso comer o bolo todo e nele os ingredientes vão além do descompromisso, como: não receber o famoso telefonema no dia seguinte, não saber se está namorando mesmo depois de sair um mês com a mesma pessoa, não se importar se o outro estiver beijando outra, etc, etc, etc. Embora já saibam namorar, "os tribalistas" não namoram. Ficar, também é coisa do passado. A palavra de ordem hoje é "namorix". A pessoa pode ter um, dois e até três namorix ao mesmo tempo. Dificilmente está apaixonada por seus namorix, mas gosta da companhia do outro e de manter a ilusão de que não está sozinho. Nessa nova modalidade de relacionamento, ninguém pode se queixar de nada.
Caso uma das partes se ausente durante uma semana, a outra deve fingir que nada aconteceu, afinal, não estão namorando. Aliás, quando foi que se estabeleceu que namoro é sinônimo de cobrança? A nova geração prega liberdade, mas acaba tendo visões unilaterais. Assim como só deseja "a cereja do bolo tribal", enxerga somente o lado negativo das relações mais sólidas.
Desconhece a delícia de assistir a um filme debaixo das cobertas num dia chuvoso comendo pipoca com chocolate quente, o prazer de dormir junto abraçado, roçando os pés sob as cobertas e a troca de cumplicidade, carinho e amor.
Namorar é algo que vai muito além das cobranças. É cuidar do outro e ser cuidado por ele, é telefonar só pra dizer bom dia, ter uma boa companhia para ir ao cinema de mãos dadas, transar por amor, ter alguém para fazer e receber cafuné, um colo para chorar, uma mão para enxugar lágrimas, enfim, é ter "alguém para amar".
Já dizia o poeta que "amar se aprende amando" e se seguirmos seu raciocínio, esbarraremos na lição que nos foi passada nas décadas passadas: relação é sinônimo de desilusão. O número avassalador de divórcios, nos últimos tempos, só veio a confirmar essa tese, e aqueles que se divorciaram (pais e mães dos adeptos do tribalismo) vendem, na maioria das vezes, que casar é um péssimo negócio e que uma relação sólida é sinal de frustrações futuras.
Talvez seja por isso que pronunciar a palavra "namoro" traga tanto medo e rejeição. No entanto, vivemos em uma época muito diferente daquela em que nossos pais viveram. Hoje podemos optar com maior liberdade e não somos mais obrigados a "comer sal juntos até morrer". Não se trata de responsabilizar pais e mães, ou atribuir um significado latente aos acontecimentos vividos e assimilados na infância, pois somos responsáveis por nossas escolhas, assim como o que fazemos com as lições que nos chegam.
A questão não é casual, mas quem sabe correlacional. Podemos aprender a amar nos relacionando, trocando experiências, afetos, conflitos e sensações. Não precisamos amar sob os conceitos que nos foram passados. Somos livres para optarmos! E ser livre não é beijar na boca e não ser de ninguém. É ter coragem, ser autêntico e se permitir viver um sentimento... É arriscar, pagar para ver e correr atrás da felicidade. É doar e receber, é estar disponível de alma, para que as surpresas da vida possam aparecer. É compartilhar momentos de alegria e buscar tirar proveito até mesmo das coisas ruins.
Ser de todo mundo e não ser de ninguém é o mesmo que não ter ninguém também... É não ser livre para trocar e crescer... É estar fadado ao fracasso emocional e à tão temida solidão."
Barrinha MaynaBaby

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Que Simone de Beauvoir Nos Salve!

Estava outro dia no banco onde tenho conta, sentada, esperando ser atendida. Ia fazer umas operações e aguardava o gerente. Enquanto isso, eu, que leio até bula de remédio, comecei a me entreter com a leitura dos panfletos que vendiam os produtos oferecidos pelo banco: seguro, capitalização etc. Um deles, o que falava de previdência, me chamou à atenção. Na verdade, o texto era simples e não oferecia nada muito diferente do que as outras previdências existentes no mercado; falava, como todas as outras, dos seus benefícios, discutia sobre qual o melhor regime tributário, considerava como poderia ser a aplicação, se a fundo conservador, moderado ou agressivo, enfim, o trivial. E, então, me deparo com um produto que pode não ser novo, mas eu ainda não tinha visto: o Prev Mulher.

Pensei comigo: um modelo de previdência privada específica para mulher? Interessante. Somos mesmo tão diferentes do gênero que nos acompanha nessa trajetória sócio-histórica e, por que não (?) galáctica, que precisamos de um plano de previdência específico para nós? Óbvio que, como integrante desse grupo especial que tem até plano de previdência próprio, fui ler com atenção, já pensando: "que é que eu estou fazendo que não tenho um Prev Mulher?", "Mas que tipo de mulher eu sou?" Até porque o texto dizia que esse é um produto inovador e eu, que jurava estar inserida no contexto da pós-modernidade, ainda não possuía esse produto que me inscreve, por seu caráter inovador, nos códigos do mundo moderno.

E então, com a melhor expressão de pasmo absoluto, leio as vantagens que esse tipo de previdência pode me conferir ao me garantir assistências exclusivas: orientação nutricional, descontos em rede de estética, assistência Pet e, o melhor, serviço "Seu Ajudante" para reparos e instalações.

Fui forçada a sorrir porque era claro que se tratava de uma piada! Mas depois, novamente lúcida, lembrei que nada naquela instituição estava relacionado ao humor. Todas aquelas gravatas e saltos ultrafinos jamais permitiriam que brincadeiras saltitassem naquele recinto. Ali era lugar para coisas sérias. Nada de risos. Cenhos franzidos e expressões severas eram mais apropriados.

Foi então que pensei que aquilo era algo realmente muito sério. Séculos de opressão feminina, de recalque, de discriminação contra a mulher não poderiam ser superados por meros sutians queimados. É preciso mais que isso. Mudar a mentalidade medieval sobre o papel da mulher ao lado (veja bem: nem acima nem abaixo) do homem no mundo contemporâneo talvez seja uma tarefa mais difícil do que supomos.

Não precisamos do Prev Mulher ou precisamos tanto quanto os homens. Os benefícios garantidos por esse produto não são, na verdade, exclusivos da mulher. São todos benefícios legítimos. Realmente, parece haver lucro, há uma contrapartida razoável, embora não seja essencial, mas é um supérfluo que garante comodidade e conforto, para ambos os gêneros (para o homem tanto quanto para a mulher). Há, portanto, um equívoco no nome do produto.

Ou então um equívoco na visão que se tem da mulher. O que subjaz ao discurso do Prev Mulher? Orientação nutricional: as mulheres estão sempre preocupadas com a balança, têm medo de engordar, são compulsivas por shakes e dietas de todos os astros do sistema solar (entre as quais a da lua, sem dúvida, é a campeã), sofrem porque não conseguem entrar mais na calça tamanho 38, de quando tinha 17 anos, e usam o tamanho 40 deitando na cama pra fechar o zíper porque se negam a comprar o tamanho 42 (preferem a morte!). Desconto em rede de estética: preocupação nº 2 na vida da mulher (associada à 1ª) - cabelo, unha, pele, medidas. Assistência animal: depois da lancheira dos filhos, a maior preocupação da mulher seria que xampu comprar para o totó? Serviço "Seu Ajudante": enquanto o marido se preocupa com coisas realmente importantes, a mulher, dedicada à casa, se beneficia com a ajuda doméstica garantida pelo Prev Mulher.

Então continuei em meus pensamentos profundos: ou eu não sou mulher (e descobrir isso 40 anos depois me exigiria alguns anos de terapia) ou tem alguma coisa errada com o Prev Mulher. Porque uso tamanho 42 sem traumas; vou ao mesmo salão há anos para retocar minhas luzes douradas de que tanto gosto, mas ainda que mantenha minhas unhas limpas (higiene é fundamental!), nem sempre tenho paciência para ficar 1h na manicure só para escolher o esmalte da moda e estou devendo uma visita ao dermatologista (ai, ai, as rugas!), que vivo adiando - tem sempre coisa mais importante pra fazer; acho fofos cachorrinhos e gatinhos, mas não me dedico tanto a eles; e, pasmem: sei trocar lâmpada, desentupir pia, consigo com alguma facilidade trocar os móveis da casa e consertar coisas simples. Tenho certeza (ou quase) de que não tomei nenhum elixir ou fiz parte de alguma experiência genética. Já meu irmão, 8 anos mais novo, é um espécime interessante: casado, duas filhas, lindo de morrer (ou de viver), cabra macho (por opção), faz as unhas toda semana, adora cremes e perfumes, é fiel à nutricionista, tem sua dieta colada à geladeira, é incapaz de trocar uma lâmpada, encanamento nem pensar, e só não tem um frufru pra passear no calçadão e comprar as novidades do pet shop porque é alérgico, mas tenho certeza de que sonha com isso.

Há algum problema nisso? Então seria meu irmão um cliete potencial mais adequado ao Prev Mulher do que eu? Mas embora ele não tenha nenhum dúvida com relação à sua sexualidade, não é adequado um produto que não se dirige a ele, que não o engloba.

Meu irmão não é excessão. Como disse, frequento o mesmo salão há anos - sim, fidelidade é uma de minhas qualidades - e conheço muitos homens que também o frequentam há tanto tempo quanto eu. Eles já foram chamados de metrossexuais, como se fossem uma espécie diferente, andróginos. Isso é, como toda forma de preconceito, um absurdo dos grandes e uma ignorância indizível.

Cuidar da saúde, da beleza, gostar de animais, não saber ou não gostar de fazer serviços domésticos, como reparos ou instalações, nada disso é exclusivo do público feminino. Pensar assim é evocar a visão estereotipada da mulher como se esta só se interessasse por coisas consideradas fúteis. Pensar assim não é inovar, é retroagir, é manter-se preso aos códigos do século XIX.



Barrinha MaynaBaby

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ah, Bruta Flor do Querer!


Vontade e Desejo. Quase irmãs siamesas. Complementares. Cada qual tem a sua individualidade suas características próprias e suas funções, mas ambas, para serem sadias, precisam ser interdependentes, uma precisa da outra para garantirem os movimentos de contração e expansão próprios da existência humana.

Desejo é paixão, é arrebatamento, é expansão. Nasce da imaginação, da fantasia, do sonho. E é exigente e impaciente: quer tudo ao mesmo tempo - agora! Não compreende o tempo, na verdade, não o suporta, precisa de satisfação imediata.

Vontade é decisão, é discernimento, pode ser tanto expansão quanto contração. Nasce da reflexão, do pensamento amadurecido, ponderado. Assim, o tempo, para ela, é mais um amigo, é aquele que a ajuda a realizar-se. O esforço e o bom senso trabalham considerando o meio e os fins e aceitam que a satisfação não seja imediata.

Existem, então, três características fundamentais da vontade que a distinguem do desejo: 1- Esforço para superar os obstáculos materias, físicos e psíquicos - persistência, obstinação, permanência são suas marcas, por isso falamos em força de vontade. 2- Reflexão antes da ação -  pensar, medir, comparar, observar, julgar, enfim, avaliar para então realizar a tomada de decisão. 3- Responsabilidade - a vontade realiza-se no plano do possível, do que pode ser ou pode deixar de ser, daquilo que tem condições de acontecer a partir de um ato voluntário.

Mas vontade sem desejo não se realiza. É propriamente o desejo que permite o ensejo dos motivos interiores e os objetivos exteriores para que a vontade se concretize numa ação. Se cabe à vontade educar moralmente o desejo, cabe ao desejo impulsionar a vontade, dar-lhe motivação necessária para a sua concretização.

Então vontade e desejo, juntamente com consciência, formam a tríade que dão estrutura à  vida ética, sendo a consciência e o desejo responsáveis pelas intenções e motivações e a vontade responsável pelas finalidades e ações.  As intenções e motivações estão para a qualidade das atitudes e sentimentos internos do sujeito assim como as ações e finalidades estão para a qualidade das atitudes externas, ou seja, a conduta e o comportamento deste mesmo sujeito.

Muito se poderia discutir acerca desse tema, dentro de uma perspectiva filosófica. Há correntes de pensamento diversas, como o racionalismo ético, o emotivismo ético, e mesmo o pensamento nietzscheano, muitas vezes chamado de irracionalismo, que propõe uma genealogia da moral. Mas penso que cada um de nós compreende a importância de dar o espaço e o peso adequados à vontade e ao desejo em nossa existência - ou seja: a medida certa, o equilíbrio. Na nossa vida prática e na nossa vida afetiva, precisamos de ponderação, de reflexão, de fazer bom juízo dos fatos e planejar nossas ações, mas não podemos deixar de dar vazão às nossas emoções, às paixões, aos desejos, à expansão da força vital.

Do contrário, ficamos apenas no plano e não conseguimos nos satisfazer, perdemos a oportunidade de sentir prazer, de viver em plenitude tudo o que podemos. E, por melhor que seja a partitura, nada se compara à musica executada. Assim, façamos uma reflexão profunda das nossas possibilidades, mas sem o peso da severidade excessiva, e sim graciosamente leve como o levitar dos colibris.
Barrinha MaynaBaby