sábado, 18 de junho de 2011

À Espera

Noite de chuva. A cidade quase toda adormecida. Só a luz naquela janela do terceiro andar do edifício em frente teimava em se manter acesa. Uma mulher de cabelos escuros, compridos, um pouco revoltos, aparecia vez por outra na janela, espiando a rua. Qualquer barulho a fazia correr à janela, num acesso de ansiedade que me deixava consternada.

Eu estava na varanda, deitada na rede, querendo descansar do dia corrido que tive naquele escritório que não me deixava respirar. Tinha tomado um banho morno, estava vestida num pijama confortável e fui me embalar olhando a rua quieta, uma paisagem tão diferente do que era à luz do dia. Queria repousar as retinas naquela mansidão. Ver a rua sem gente me fazia percebê-la maior e me dava a sensação de que ela pertencia só a mim.

Estava me perdendo em meus pensamentos, quando dei por essa cena que se repetia em quadros. Era sempre o mesmo movimento angustiado. Às vezes nem ruído havia, mas o sobressalto era o mesmo. O mesmo gesto tenso, nervoso, as mãos unidas acima do estômago, depois retorcidas, o olhar parado, pregado no fim da rua, longe, lá no cruzamento, como que esperando algo acontecer.

O que se passava na mente daquela mulher? Quem ou o que ela estaria esperando? O marido que se perdera em algum bar? Estaria ele nos braços de outra? Não, de jeito algum, pensaria ela. Havia uma explicação para tamanha demora. E a explicação a afligia. Não havia explicação boa para alguém não estar onde a esperam numa hora dessas. Há uma explicação. Um problema no carro. As pessoas passam pelas situações mais insólitas por causa de uma pane no carro. E nessas horas, não há telefone perto, os lugares são sempre os mais esquisitos e é claro que a bateria do celular descarregou. Ou então não. Meu Deus! Pode ser pior! Um acidente! Seria melhor ligar para os hospitais? Não, melhor não fazer isso ainda. É melhor esperar mais um pouco. O celular está desligado. Essas baterias não duram mais nada. Ou então está fora de área. Agora é assim – alguém já viu celular sempre com cobertura de área? É uma lenda isso.

Um carro entra na rua. Um pulo da cadeira. Assisto ao pulo da minha rede – quase pulo também. Não é ele, são uns garotos voltando de algum lugar. Embora tenham cortado o meu silêncio, não fico brava com eles. Na verdade, abro um sorriso e os olho com uma compreensão enternecida. São todos tão alegres, tanto quanto é possível na adolescência, sem preocupação com nada. Para eles, a vida é uma festa.

E ele que não chega? Acho que é ele, e é marido. Poderia ser filho ou filha, mas se fosse ela não sairia da janela. Filho faz a gente não desgrudar da janela, a não ser para ir atrás percorrendo as ruas da cidade. Se fosse filho não só os hospitais já teriam sido procurados, como a polícia teria sido acionada. Não era filho. Era marido. Ou namorado, ou amante...

Havia aflição, mas também havia outro sentimento perceptível, havia desprezo e mágoa, alternadamente. Algo do tipo “ah, deixa pra lá, ele não me merece”, e de volta pra sala, furiosa. Mas depois outra vez o sobressalto, tornando claro o desejo de que ele enfim chegue.

Engraçado, ela mora em frente à minha casa e eu nunca havia reparado nela. Agora quase me sinto íntima, preocupada com sua aflição, com uma raiva danada desse homem que não chega para acabar com o martírio dessa pobre mulher. Estou completamente envolvida com a situação.  É uma mulher bonita, não havia ainda percebido, mas agora olhando mais detidamente, me impressionei com uma beleza retraída, uma beleza que não aspira se mostrar, escondida por trás daqueles olhos tristes e distantes, fixos no fim da rua, mas capazes de ir além, como se corressem como humildes formiguinhas atrás desse homem que não chega.

Uma luz vinda do cruzamento ilumina o ponto de referência da agonia dessa mulher que não é mais uma estranha para mim. Somos companheiras já, ficamos unidas na angústia da espera. A luz se aproxima, e junto com ela um ronco suave de um motor, que diminui a velocidade à medida que se aproxima do prédio em frente à minha casa. A mulher, que havia dado um pulo ao ouvir o barulho e estava na janela, reconheceu de imediato o que tanto esperava e, num gesto rápido, sai da janela apagando a luz. Tudo aconteceu numa velocidade tamanha, que parecia ter sido ensaiada muitas vezes. Uma sincronia perfeita de movimentos. Apesar da rapidez e de estar alternando meu olhar desperto, distraído de mim mesma e absorto naquela cena alheia a mim, pude perceber no semblante da minha companheira de espera um lampejo de sentimentos vários: havia alívio clarificado no seu olhar, desprezo manifesto no endurecimento dos lábios, tristeza presa entre as linhas de expressão, e uma espécie de renúncia de si mesma, uma resignação revelada na sua fuga da sala para outro cômodo da casa, um quarto talvez, onde possivelmente ela iria esconder o desespero, a frustração, o desamor, a alma ressequida, os olhos sombrios, enevoados pelas lágrimas que enfim irromperam naquele rosto bonito e sofrido de mulher.
Barrinha MaynaBaby

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